QUEM OCUPA

Irene da Silva usa óculos, moletom com capuz cinza e sorri para a foto

Dos direitos sociais: Trabalho

por Renata Souza

一 Bom dia, dona Irene!

Essa deve ser a frase que Irene da Silva, porteira da ocupação 9 de Julho, em São Paulo, mais ouve. Em uma conversa de cerca de 30 minutos foram cinco cumprimentos – fora os transeuntes que, ao perceber a entrevista, passaram quietos. Sentada em uma cadeira próxima à parede do pequeno espaço que compõe a portaria, Irene utiliza uma espécie de estaca de madeira para apertar o botão que abre a porta, localizado na outra extremidade do cômodo.

Apesar de dizer que o trabalho é tranquilo e que nunca presenciou nenhuma cena desconfortável, a senhora, de 69 anos, não nega a correria de sua função. No dia em que conversamos – a que ela se referiu como “quietinho” – o movimento era menos intenso do que o habitual. Ainda assim, Irene se mantinha atenta às câmeras e ao movimento de membros do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), da prefeitura de São Paulo, que haviam ido até a ocupação atualizar o cadastro dos moradores. 

Em dias mais movimentados, a porteira chega a receber centenas de visitantes – quando há agendamento de escolas, por exemplo – e até equipes de filmagem – que vão desde jornalistas até produtores audiovisuais. O mês de setembro foi um desses em que a agitação tomou conta dos corredores do edifício. Durante a semana, caixas enfileiradas na entrada da ocupação aguardavam o deslocamento de dezenas de famílias em mudança para o residencial Cambridge. Nas escadas, os moradores se revezavam entre subidas e descidas levando os objetos. A quietude também não surgia aos finais de semana, quando a 9 de Julho se enchia em eventos de campanha de Carmen Silva – que pleiteou uma vaga na Assembleia Legislativa de São Paulo nas eleições de 2022.

Todos tinham pressa naquelas semanas: os que se mudariam para um apartamento próprio e os que aguardavam uma vaga na ocupação.

Na véspera de sua mudança, dona Irene comandava a portaria com agitação. Agitação e esperança. “Me deu até dor de cabeça quando ela falou: ‘você pode mudar amanhã’”. Naquele 14 de setembro não era apenas a porteira que vislumbrava um sonho se tornando realidade.

一 Já tem data a sua mudança?

一 Ainda não me falaram nada, mas, se Deus quiser, vai ser logo.
Você muda também ou continua aqui?

一 Não mudo ainda não, mas, se Deus quiser, está perto.

一  Ah, sim. Se Deus quiser. 

A conversa das duas desconhecidas em frente à portaria, ilustrava o clima da ocupação naquela semana. No caso de Irene, estar prestes a se mudar para uma casa própria significa o resultado de décadas de trabalho duro. Natural do Rio Grande do Norte, a porteira veio para São Paulo ainda jovem, sozinha, em busca de emprego. O deslocamento ocorreu junto ao de dezenas de milhares de nordestinos que deixaram suas casas na esperança de encontrar melhor qualidade de vida em outras regiões do país – especialmente no Sudeste – ao longo do século passado.

Em Natal, a potiguar deixou uma família inteira. Em São Paulo, encontrou o que procurava: trabalho. A primeira oportunidade que teve no novo endereço foi como empregada doméstica. 

Naquela época, há mais de 35 anos, a legislação brasileira ainda não regulamentava as condições de trabalho da categoria. Somente em 2015, na gestão Dilma Rousseff (PT), o país aprovou uma lei para reger o trabalho doméstico e assegurar aos profissionais da área direitos como FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), seguro-desemprego e salário-família. Mas, tendo como patrão um importante advogado da época, Irene conseguiu trabalhar com carteira assinada. Nesta função, passou anos. Quando a família decidiu deixar o Brasil e se mudar para a Flórida, nos Estados Unidos, Irene preferiu não os acompanhar. 

一  Já tinha uma família longe, ir mais longe ainda?

Quando se mudou para o Sudeste, sua mãe e irmãs permaneceram no Rio Grande do Norte. Hoje, apenas a matriarca continua por lá, às vésperas de completar 100 anos. E não foi por falta de vontade da filha que a mãe não veio para São Paulo. Na verdade, a escolha foi dela própria. A solução encontrada, então, foram as visitas anuais de Irene.

Depois que os antigos patrões foram viver nos EUA, Irene conseguiu emprego na rede Soho Hair – que hoje conta com mais de 30 unidades de salões de beleza espalhadas por São Paulo. Entrou como funcionária da limpeza e saiu como “office boy”, em um intervalo de mais de dez anos até pedir demissão. O motivo foram os enjoos constantes ao cheiro de tinta quando engravidou da filha mais velha, Kananda.

Do salão, Irene chegou a integrar a equipe de limpeza da Petrobras, antes de um longo período fora do mercado de trabalho, incentivado pelo marido. Até retomar ao mercado, teve mais uma filha: Thainara. Também foi nesse intervalo, logo após completar 60 anos, que conseguiu garantir sua previdência. Segundo ela, o processo foi simples. Não foi necessário advogado e em poucos dias recebeu a carta aprovando sua aposentadoria. Ainda assim, o desejo de retornar ao trabalho falou mais alto.

Nessa época, Irene ainda morava de aluguel e foi contratada como cuidadora de uma idosa que vivia em um prédio em frente à ocupação 9 de Julho. Mais ou menos no mesmo período, seu marido faleceu e a vida saiu dos trilhos. O aluguel ficou caro demais para uma viúva mãe de duas adolescentes. E é neste momento, vivendo a terceira idade, que o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) entra na vida de dona Irene. 

Trabalhar para ter casa; ter casa para trabalhar

Mesmo tendo trabalhado a maior parte da vida com a carteira assinada, juntando seu FGTS, Irene levou 69 anos para conquistar a chave de uma casa própria. Ao longo dos anos, chegou a simular compras de imóveis na Caixa Econômica Federal, mas em nenhuma das ocasiões conseguiu preencher todos os requisitos.


Com as dificuldades provocadas pela morte do marido, Irene recorreu ao MSTC. A princípio, 8 anos atrás, mudou-se para o Cambridge – um antigo prédio na avenida Nove de Julho que já foi hotel, casa noturna e ocupação
. Algum tempo depois, sob a coordenação do MSTC, o edifício foi selecionado pelo projeto “Minha Casa, Minha Vida – Entidades” para passar por uma reforma e se tornar habitação popular. Quem morava no Cambridge nessa época teve de encontrar um novo endereço até que os apartamentos ficassem prontos e houvesse a possibilidade de financiamento.

Irene conseguiu um apartamento na ocupação 9 de Julho e foi morar até que terminasse a reforma daquele que se tornaria o Residencial Cambridge. Foram quatro anos neste novo endereço – o mesmo período de tempo desde que se tornou porteira. Tendo passado dos 65 anos, ela conta que não via mais a possibilidade de conseguir um emprego formal. E, embora tenha a segurança da aposentadoria como mínimo para sobreviver, o trabalho sempre esteve presente em sua vida.

Na portaria, trabalha de segunda a sábado no turno diurno. Aos domingos, faz um “bico” limpando o escritório de um conhecido. Quando não está a serviço, gosta de ficar em casa na companhia de seus dois gatos, já que, desde que ficou viúva, optou por não dividir a casa com mais nenhum parceiro. 

一 Tem também a minha filha que é solteira, mas é assim: uma hora está aqui, outra hora está ali. Aí fica na casa do namorado, uma semana, duas; aí vem para casa, dois, três dias, e vai de novo. Diz ela que agora vai casar…

Dona Irene se refere à filha mais nova, Thainara. A mais velha é casada e mora em outro apartamento na ocupação 9 de Julho com marido e filho – Heitor, de 3 anos, de quem a avó pode passar minutos falando e mostrando, orgulhosa, as fotos. 

Com o mesmo orgulho, Irene fala sobre a horta da ocupação. Ela lembra que, quando o prédio foi ocupado, em 2016, além da tonelada de lixo acumulado por anos de abandono, o local estava tomado por mato. Para virar horta, o espaço em frente à portaria – que hoje abriga plantação de alface, coentro, beterraba, escarola e outros vegetais – contou com as mãos da idosa. Até hoje, continua como principal responsável, embora conte com ajuda de alguns moradores. No mesmo local, os ocupantes também mantêm um sistema de compostagem para produzir o adubo utilizado na horta.

Quando saem da terra, os alimentos têm duas possibilidades como destino final: a Cozinha Ocupação 9 de Julho, que abre ao público para servir almoço aos domingos, ou a casa dos próprios moradores. Mas, neste último caso, Irene ressalta que depende de quem é o morador. Misturando um olhar de indignação e um leve sorriso, ela explica que acha injusto que todos se beneficiem do resultado, sem ajudar no processo.


Novo lar

A porteira da Ocupação 9 de Julho se mudou para o Residencial Cambridge dia 15 de setembro de 2022. No dia 12, Irene tinha contado que a mudança estava prevista para a próxima semana – faltava ainda assinar um documento. Dois dias depois, porém, recebeu a ligação dizendo que estava tudo pronto e que a mudança ocorreria no dia 15. Em casa já estava tudo preparado, apenas aguardando o carreto. Quem não estava pronta era a dona dos móveis, que teve até dor de cabeça quando recebeu a notícia. Na verdade, não é que não estava pronta, Irene aguardou tanto por esse dia que quando enfim se tornou realidade não conseguiu conter a emoção.

Mas a dor de cabeça que sentiu quando soube que se mudaria em poucas horas foi pontual. Em geral, a saúde da idosa é “de ferro”. Segundo ela, não costuma precisar de atendimento médico frequentemente, embora faça suas consultas de rotina. O único alerta atual é o colesterol alto. 

E não é como se dona Irene estivesse tentando esconder alguma fragilidade. Durante a conversa na portaria, sua ex-patroa – que morava em frente à 9 de Julho, e atualmente vive em Sorocaba – mandou um áudio no WhatsApp contando as últimas notícias de sua vida e, sem saber, confirmando o que contava a amiga. Ao final da mensagem, a voz do outro lado da tela pergunta como está Irene:

一 E você? Está tudo bem como sempre, né? Porque você não deixa a peteca cair, né? Isso que é bom em você, essa segurança, essa firmeza que você tem!

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