Se você chegar à ocupação 9 de Julho buscando um “Felipe”, é muito provável que te perguntem “Felipe do brechó?”. “Ele mesmo!”
Felipe Figueiredo, 28 anos, cabelos e olhos castanhos, corpo esguio. Mora na ocupação coordenada pelo Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) há seis anos. Seu apartamento fica no primeiro andar do edifício. No terceiro pavimento, que abriga os escritórios administrativos, encontra-se a loja comandada por Felipe.
Quando chegou ao prédio, o pequeno comércio atuava somente no segmento brechó – revendendo roupas de segunda mão. Na gestão de Felipe, a loja lançou até uma linha exclusiva de moletons, em parceria com o Instituto Oyá.
Também colaboram com o acervo a marca Alastra e algumas estilistas, como Ale Valois e Naya Violeta, que já desfilou suas criações no São Paulo Fashion Week.
Além da loja física, que funciona de quarta-feira a domingo na rua Álvaro de Carvalho, 427, a @lojamstc também está no Instagram.
Segundo Felipe, o empreendimento tem tido lucro suficiente para se manter, além de pagar o seu salário e o de mais uma funcionária nas vezes em que é necessário – nos dias de evento, por exemplo, quando a movimentação no prédio aumenta.
Com as novidades, Felipe explica que o comércio deixa de ser um brechó e passa a ser uma loja.
Orgulhoso das mudanças que ajudou a promover, o jovem diz que está apenas começando. “Já está boa [a loja], mas ainda não está bom, vai ficar melhor”, diz em meio a uma risada.
O mesmo raciocínio ele usa para explicar sua relação com a moda. “A gente entra para fazer um trabalho, então, para fazer bem feito, você estuda, você se aperfeiçoa no assunto. Eu me aperfeiçoei, estou me aperfeiçoando.”
A dedicação, no entanto, não significa que Felipe deseje continuar atuando nessa área.
No início deste ano, o empreendedor iniciou um curso de marketing na Faculdade das Américas (FAM). Com o primeiro semestre completo, no meio de 2022, a graduação teve de ser trancada em razão de dificuldades financeiras.
Agora, os planos de Felipe são retomar os estudos no segundo semestre de 2023, quando conseguir transferir sua matrícula para uma das universidades que possuem parceria com o MSTC, disponibilizando descontos ou bolsas integrais.
Apesar de concluir o Ensino Superior ser um sonho, o jovem paulista tem convicção de que conseguirá cumprir a meta. “Já está perto, eu vou fazer. Então sonho é só ter o diploma na mão, timbrado”, explica com um sorriso no rosto.
A educação é apenas uma das áreas de sua vida que considera ter sido transformada desde que se mudou para a ocupação 9 de Julho, em 2016.
Felipe chegou ao local com sua mãe e irmã. Naquela época, as duas foram para um apartamento e o rapaz para outro, com os três se ajudando quando necessário.
No final de 2016, Felipe participou da ação para ocupar o prédio que hoje é a sua casa. Para ele, aquela foi uma das “melhores” ocupações, porque não teve represália policial.
O jovem avalia que o clima pacífico teria sido garantido pela presença de profissionais da imprensa que cobriam o ato.
Ele lembra que conheceu o MSTC através informações que circulam de “boca em boca”.
Sua mãe já tinha contato com movimentos de moradia há pelo menos duas décadas. Isso porque, no final dos anos 90, a família do jovem se mudou do interior de São Paulo para a capital e sofreu um golpe de “apartamento fantasma”: pagaram um local para morar e, quando chegaram, a residência não existia.
Tendo perdido todo o dinheiro que tinham e lidando com a descoberta de um câncer no pai, a família Figueiredo foi morar em uma ocupação do Movimento de Moradia do Centro (MMC) próxima à praça da Sé.
O pai do Felipe faleceu em 2002. Depois disso, sua mãe chegou a se relacionar com outro homem e a família morou de aluguel por alguns anos.
Em 2013, a matriarca conheceu o MSTC e passou a frequentar as reuniões de base do grupo. Cerca de três anos mais tarde, em 2016, quando a situação financeira chegou ao limite e eles começaram a ter que escolher entre comer, vestir ou pagar o aluguel, que a mãe e os dois filhos tiveram que ir viver na ocupação 9 de Julho.
Logo que se mudou, Felipe resolveu que estava na hora de rever suas pendências. A primeira era retomar os estudos que haviam sido interrompidos no primeiro ano do Ensino Médio. No final de 2017, o rapaz estava com seu diploma.
O ano seguinte foi uma montanha russa de acontecimentos. A mãe de Felipe finalmente conseguiu se aposentar, aos 62 anos, com a ajuda da assistência social do MSTC. Até então, os esforços individuais dele e da irmã não tinham sido suficientes.
Ainda em 2018, porém, a saúde da idosa, que era diagnosticada com osteoporose e diabetes, começou a se deteriorar. Nos próximos dois anos, até o falecimento da mãe, Felipe e a irmã se dedicaram aos seus cuidados.
Em 2020, além da partida de sua mãe, Felipe teve que lidar com as consequências da pandemia de Covid-19. Nessa época, ele ainda não estava à frente do brechó e começou a atuar na Casa Verbo – uma organização filantrópica encabeçada pelo MSTC para arrecadar itens de primeira necessidade, como alimentos, artigos de higiene pessoal, entre outros. As doações eram destinadas a integrantes do movimento, como Felipe, e pessoas de fora do grupo.
“Essa casa não só ajudou o movimento, como ajudou mais 51 núcleos da cidade de São Paulo, como Parelheiros, a Cracolândia, as mulheres que trabalham na Luz”, explica.
Depois que os números da Covid diminuíram no país, Felipe assumiu o brechó e voltou a tocar seus planos. No segundo semestre de 2022, com a matrícula da faculdade trancada, conseguiu parcelar uma antiga dívida com o Serasa para limpar seu nome.
Em breve, também espera finalizar um tratamento dentário que há muito tempo vem sonhando. Segundo ele, é apenas uma questão estética, para “ficar mais bonito mesmo, porque não é porque você é sem-teto que você não tem que se cuidar.”
As relações sociais
Enumerando as mudanças que observa na sua vida desde que ingressou no MSTC, Felipe, que chegou à ocupação no auge dos seus 22 anos, diz com convicção que o movimento possibilita que ele desfrute da cidade e desenvolva relações sociais.
Além dos direitos tradicionalmente lembrados quando se pensa na Constituição Federal, como educação, saúde e trabalho, por exemplo, o lazer também é assegurado pela Carta Magna brasileira – já na primeira formulação do artigo 6º do capítulo II, que foi alterado três vezes desde 1988.
Para explicar como se deu a mudança da sua relação com o lazer antes e depois de ter ido morar na ocupação, Felipe diz que, em primeiro lugar, considera difícil fazer amizade em São Paulo, principalmente quando não se tem dinheiro para bancar a diversão.
“Dentro de casa você não faz amizade. Mesmo para você ter o celular, você precisa ter dinheiro para colocar crédito. Ou você vai ficar 24 horas em uma praça que tenha Wi-Fi”, argumenta.
No período anterior ao movimento, o jovem lembra que até mantinha contato com alguns colegas de trabalho, ocasionalmente indo juntos para festas, mas não sentia que integrava uma “rede de amigos”.
Sobre a vida que deixou para trás, Felipe diz que vivia em “uma caixinha do sistema: trabalho, casa, algumas vezes você curte – escolhendo se você vai comer, se você vai vestir, se você vai pagar –, tendo sonhos que uma hora se tornam impossíveis, porque sempre a inflação está alta e o salário está baixo. E não fecha nunca a conta do que você quer comprar”.
Naquela época, Felipe se considerava mais festeiro. Hoje em dia, com as responsabilidades da vida adulta, seu tipo de divertimento mudou.
Embora continue um grande apreciador da vida fora de casa, o jovem prefere viajar, ir a parques, cinemas, teatros e andar de bicicleta. “Pouco shopping e balada”, conta.
A imersão à vida cultural paulistana, Felipe associa diretamente ao MSTC. Desde que entrou para o movimento, conheceu o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), o Museu Judaico de São Paulo, a Bienal, dentre outros polos culturais.
Segundo Felipe, o MSTC também ajuda os mais jovens a garantir meia-entrada em atividades de lazer, uma vez que direciona os membros a emitirem um Número de Identificação Social (NIS).
A numeração criada pelo Governo Federal possibilita o cadastro em diversos programas de assistência do governo, como o Auxílio Brasil, o seguro-desemprego e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
O NIS também é um dos requisitos do governo para a emissão da Identidade Jovem, ou ID Jovem – um documento concedido a jovens baixa-renda de 15 a 29 anos que “possibilita acesso aos benefícios de meia-entrada em eventos artístico-culturais e esportivos e também a vagas gratuitas ou com desconto no sistema de transporte coletivo interestadual, conforme disposto no Decreto nº 8.537, de 5 de outubro de 2015”, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Além disso, o MSTC promove seus próprios eventos culturais, como apresentações de espetáculos teatrais, shows, cursos e exposições.
Pelos corredores da 9 de Julho, o jovem paulista já cruzou com diversos artistas, como Gregório Duvivier, Liniker, Linn da Quebrada, Bela Gil, Emicida, Mano Brown, Maria Gadú e Bia Ferreira.
Mas ele não faz grande alarde sobre os encontros. “Passa, deixa entrar, como outra pessoa qualquer”, conta. Os momentos de tietagem, claro, acontecem quando Felipe gosta muito de alguém que adentra os portões da ocupação.
Ele lembra de ter ido falar com Linn da Quebrada e lamenta não ter se dado conta de que, ao lado da cantora, estava Liniker. “Idiota”, diz ele, brincando sobre si mesmo enquanto revira os olhos em uma risada.
A relação Felipe, arte e MSTC começou logo que ele chegou ao movimento dos sem-teto. Seu primeiro trabalho por lá foi como guia da galeria “Reocupa” – um espaço de arte no saguão da ocupação 9 de Julho, criado pelo MSTC em parceria com o coletivo Aparelhamento.
A galeria concebeu três exposições ao longo do primeiro ano em que permaneceu em funcionamento. Segundo Felipe, 350 artistas expuseram suas obras.
Naquele ano, uma votação feita pela revista Select premiou a segunda exposição da Reocupa, intitulada “O Que Não É Floresta É Prisão Política”, como a segunda melhor exposição coletiva institucional de 2019.
O rapaz tomou gosto pela coisa. Até pensou em cursar Artes Cênicas, mas com o “país do jeito que está, não tem como viver com arte. Além de pobre, sem-teto, ainda optar por ser artista… Eu preferi optar pelo Marketing para garantir o sustento, trabalho. E, depois, quem sabe, lá na frente, um artista”.
Felipe pensa bastante sobre o seu futuro e tem consciência de que a vida na ocupação é temporária. “Eu já cheguei aqui, mas não está bom, não quero ficar aqui. Isso aqui não é minha expectativa, eu estou passando por aqui. Vou deixar o meu melhor, mas eu quero mais.”
Como os outros moradores do MSTC ouvidos neste projeto, Felipe conta que o objetivo do movimento não é ser a solução definitiva na vida de seus membros e, sim, garantir condições para que consigam atingir seus objetivos e assegurar seus direitos.
Por essa razão, o jovem tem usado esse tempo para resolver pendências e juntar dinheiro.
“É muito básico você desembolsar 220 reais [contribuição paga pelos moradores da ocupação] e quando as oportunidades chegarem você falar: ‘ah, eu não tenho’. Por quê? Não guardou, não pensou. Então é para isso que eu estou me preparando, porque se eu não conseguir financiamento aqui, eu vou ter que ter o nome limpo para alugar um lugar, para fazer a mudança, para sair com as minhas coisas daqui, porque aqui é uma ocupação. Uma hora ou outra ou vai ter um projeto ou vai ter uma reintegração.”