QUEM OCUPA

Amanda sorri para a foto sentada em um sofá. Ela usa blusa preta e casaco marrom

Dos direitos sociais: Educação

por Renata Souza

Da entrada do prédio até a porta de seu apartamento, Amanda subiu falando sobre os planos profissionais mais recentes da sua filha mais velha. Antes, queria ser médica. Agora, jornalista.

Em frente à entrada de sua casa, pediu para seu marido segurar o cachorro. Um vira-lata caramelo grande e brincalhão. 

Do lado de dentro, cheiro de morango com chocolate. Mais tarde naquele mesmo dia seus filhos venderiam os espetos na ocupação 9 de julho. A atividade nasceu do desejo de sua menina, Alice – a mesma que quer seguir os caminhos da reportagem – de viajar para Nova York daqui três anos, quando completar seus 18.

Amanda Regina Cayres tem 35 anos, é advogada, casada e mãe de três filhos: Alice, 15, Ryan, 14, e Valentina, 3. Há alguns meses mora no Residencial Cambridge, o antigo Cambridge Hotel, na avenida Nove de Julho, região central de São Paulo.

Na década de 50, o Cambridge era uma das hospedagens mais cobiçadas da capital paulista. Por lá se hospedaram desde membros anônimos da elite até celebridades internacionais, como o cantor estadunidense Nat King Cole, em 1959. Mais de 60 anos depois, um dos apartamentos do edifício se tornou lar da família de Amanda – uma das primeiras a se mudar para o residencial depois da reforma que o transformou em um prédio de moradia popular.

Até conseguir realizar o sonho da casa própria, no entanto, a advogada passou 11 anos sem ter acesso ao direito da moradia – vivendo em ocupações do MSTC. Apesar disso, foi neste mesmo período em que conseguiu fugir das estatísticas do país e se formar em um curso superior.

Nascida na zona Leste de São Paulo, no bairro de Belém, Amanda conheceu o Movimento Sem-Teto do Centro em 2009. Desempregada, sem casa própria e com dois filhos pequenos para sustentar – Alice no auge dos seus dois anos e Ryan prestes a completar um –, a renda do marido não era mais suficiente. Foi o irmão mais novo da paulistana que a apresentou ao movimento. Sem saber ao certo do que se tratava, mas sem nenhuma alternativa, o MSTC foi um ponto de esperança. 

Amanda e o marido começaram, então, a frequentar as reuniões de base do movimento. “Para a gente entender toda a dinâmica do movimento, a estratégia. Para a gente entender o coletivo, entender que a gente vai ocupar um espaço e, a partir dali, tudo é no coletivo”, explica.

Em 2009, a família Cayres foi morar na ocupação Nove de Julho. Dois meses depois, o pior cenário que poderiam imaginar: o prédio foi reintegrado pela polícia sob a alegação de que o edifício oferecia riscos ao grupo. Sem ter para onde ir, os dois adultos e as duas crianças permaneceram cerca de dez dias desabrigados na avenida Nove de Julho.


Junto da família de Amanda, outras pessoas permaneceram na avenida após serem retiradas do prédio. A situação era insustentável. Para dispersar o agrupamento de sem-tetos, chegou a tropa de Choque da Polícia Militar estadual.

A advogada lembra do grupo correndo pela Nove de Julho para fugir das bombas de gás lacrimogêneo, enquanto davam a volta pela avenida até retornarem ao ponto de partida. “E aí foi o momento em que eles viram que dessa forma não era solução para a nossa questão”, conta.

Como alternativa, a prefeitura de São Paulo decidiu atender às famílias em um abrigo temporário próximo à região. Por ali, o grupo ficou até ser cadastrado para receber uma ajuda de custo. Amanda não lembra exatamente o valor do auxílio nem por quanto tempo recebeu, mas diz ter sido algo entre seis meses e um ano. Com o dinheiro, conseguiram alugar um quarto para abrigar os quatro Cayres. 

Os custos de um teto

Sob a proteção de um teto e reinserida no mercado de trabalho, Amanda pôde olhar para o sonho de se tornar advogada. Antes, teve que prestar uma prova para concluir o último ano do ensino médio – interrompido por uma gravidez inesperada aos 19 anos. 

Quando decidiu que faria um curso superior, a paulistana trabalhava em uma organização social há cerca de um ano. Os chefes, vendo sua situação – jovem, mãe, periférica e cheia de vontade de mudar de vida –, decidiram promovê-la. Era o detalhe que faltava. No mês seguinte, em julho de 2010, aos 23 anos, Amanda iniciou o curso de Direito na Universidade Paulista (Unip).

Mesmo com os dois adultos trabalhando, a renda da família começou a não ser suficiente para sustentar os filhos, bancar o aluguel e pagar a faculdade de Amanda. Foi então que decidiram ir morar com uma tia no Parque Residencial Cocaia, no bairro do Grajaú, extremo Sul de São Paulo. Lá, os custos de ter um teto deixaram de ser em reais e passaram a ser em tempo.

Separada por quase 40 quilômetros de onde estavam o local de trabalho e a universidade, a rotina de Amanda começou a ser dar conta de estar em todos os lugares que precisava. Metade do dia era dedicada às aulas e a outra metade ao trabalho. Como muitos paulistanos, uma parte considerável do seu tempo diário ficava no deslocamento. De acordo com o Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), naquele mesmo ano em que Amanda ingressou na faculdade, 957.583 pessoas que trabalhavam fora do domicílio e retornavam para seus lares diariamente gastavam entre 1 e 2 horas em deslocamento no município de São Paulo.

Apesar do desgaste pessoal, quem falou mais alto foi a voz de mãe: entre cumprir todas as obrigações, não sobrava tempo para estar com as crianças. “A única alternativa para eu conseguir continuar estudando e estar com os meus filhos era voltar para a ocupação”, lembra. 


Mesmo entendendo que no imaginário popular integrantes de grupos que defendem o direito à moradia por meio de ocupações são pessoas que “querem morar de graça”, em suas próprias palavras, Amanda diz que naquele momento escolheu lutar pelos seus direitos e não apenas ter uma casa, mas ter uma casa que lhe proporcionasse condições de estudar, trabalhar e cuidar de seus filhos.

Em 5 de novembro de 2011, a paulistana vai morar na Ocupação Rio Branco, também coordenada pelo MSTC. No início, por conta da experiência anterior de reintegração de posse, Amanda decidiu não levar seus filhos. As crianças permaneceram com a avó paterna até que as coisas estivessem estáveis. Quando conseguiram vaga na creche, Alice e Ryan puderam se juntar aos pais. Ali, em um dos apartamentos do prédio de número 53 da avenida Rio Branco, a família morou por oito anos. Também foi nesse espaço que Amanda conseguiu se formar como advogada.

Embora a Constituição Federal assegure o direito à Educação, o acesso ao Ensino Superior ainda é um desafio para o Brasil. A meta do Plano Nacional de Educação (PNE), equivalente à lei nº 13.005, é garantir que 33% dos jovens de 18 a 24 anos estejam matriculados na educação superior até 2024. 

No ano em que Amanda ingressou, 2010, menos de 20% da população dessa faixa etária frequentava o Ensino Superior, segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). 

Em 2016, quando a advogada se formou, o Anuário Brasileiro de Educação Básica, elaborado pela organização Todos Pela Educação com base em dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), aponta que 20,7% das pessoas entre 18 e 24 anos frequentavam o Ensino Superior. 

No último anuário divulgado, referente a 2020, a taxa estava em 23,8% – quase 10 pontos percentuais de distância para a meta do PNE. 

Neste ano, será a primeira vez, desde que o Todos Pela Educação começou a compilar os dados, em 2012, que o anuário não será publicado. Segundo a entidade, “isso acontece em virtude das mudanças no formato de divulgação do Censo Escolar da Educação Básica, Censo da Educação Superior e Enem, todos de 2021. Essas divulgações deixaram de fornecer informações importantes sobre alunos, professores e gestores, os chamados “microdados”, utilizados para o cálculo de muitos dos indicadores disponíveis na publicação”.

De acordo com o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), a mudança ocorre em adequação à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

Desde que se formou, Amanda atua na área criminal e na social. Em 2020, chegou a abrir um escritório de advocacia em sociedade, que foi encerrado na metade de 2022. Hoje, trabalha sem vínculo com nenhuma empresa.

Formada, trabalhando e abrigada, a advogada se emociona ao pensar em quais são seus sonhos atuais. Entre lágrimas, ela diz que seu maior desejo atualmente é ajudar outras pessoas que se encontram na situação em que um dia esteve a conquistarem seus direitos.


Sobre como faz isso, Amanda responde imediatamente: “Eu acho que quando eu levo a minha verdade para os outros. Quando eu vou nas comunidades, quando eu vou atrás daqueles que sofrem o que a Amanda sofreu lá atrás. E eu levo a informação, as possibilidades. A gente fala assim que o mundo está informatizado, a internet, quem quiser acessar a informação tem… Mas ainda é muito utópico, sabe? Tem pessoas que realmente sofrem, quem realmente não tem acesso a nada. É isso.”

Compartilhe

Leia mais

CARMEN SILVA

Clique e saiba mais

SHEILA SANTOS

Clique e saiba mais

IRENE DA SILVA

Clique e saiba mais

FELIPE FIGUEIREDO

Clique e saiba mais

plugins premium WordPress