Grávida do terceiro filho, vivendo em um quarto de pensão com o marido desempregado, Sheila não faz ideia de como resolver seus problemas. Nos últimos tempos, tem dias que até para comer é preciso contar com a sorte de alguém ajudar.
O dinheiro que ela ganha ajudando a prima a fazer bolos para vender para lojistas do shopping Higienópolis, em um dos bairros mais nobres da capital paulista, não é suficiente nem para o aluguel.
A possibilidade de qualquer dia faltar o dinheiro do cômodo e a família ser despejada a assombra. E há também outros fantasmas perturbando a mulher.
Sua primogênita está vivendo com a avó no Maranhão, enquanto a mãe tenta ganhar a vida em São Paulo. Por aqui, o quarto, que já é pequeno para os três moradores atuais, ficará insustentável com a chegada da bebê que está gestando.
Tudo isso a faz pensar que talvez seja hora de criar coragem e encarar a única solução que tem em vista. Foi a esposa de um colega do marido que apresentou a alternativa.
Perto dali, na avenida Nove de Julho, um edifício acabou de ser ocupado por um movimento de moradia. Sheila visitou o lugar e não ficou muito contente: o prédio, que ficou anos abandonado, não parece o lugar ideal para criar seus filhos.
Na equação que tenta resolver, ainda há o medo. Suas primas lhe disseram que essas ocupações são perigosas… A polícia pode entrar a qualquer momento e tirar todos dali, não importando se há ou não crianças. Mas que opção ela tem? Onde está, o despejo é uma questão de tempo.
Foi assim que Sheila Santos decidiu ir morar na ocupação Nove de Julho, no final de 2016. A mudança aconteceu em janeiro do ano seguinte, um mês depois que seu marido, Wanderson Teixeira, conheceu o local.
Instalados na nova residência, o casal começou a frequentar as reuniões semanais do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) para entender a dinâmica da organização.
Como fazia pouco tempo que o antigo prédio do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) havia sido ocupado (leia mais), restava muito trabalho a ser feito. Pouco a pouco, os engenheiros aliados do movimento iam liberando os andares da construção para receber as famílias.
Nesse meio tempo, enquanto se integrava ao grupo e se familiarizava com a líder do movimento, Carmen Silva, Sheila lembra que começou a pegar confiança no MSTC.
Junto de outras centenas de sem-teto, a maranhense, que chegou em São Paulo sozinha com o marido, finalmente se sentiu amparada. A partir dali, mesmo se a polícia realizasse uma reintegração de posse – como se ameaçou algumas vezes –, ela sentia que não estaria mais sozinha.
Sheila se casou jovem, aos 19 anos. Antes, teve tempo de concluir o Ensino Médio. Após o matrimônio, foi morar na cidade do marido, Humberto de Campos, no interior do Maranhão.
Nessa época, trabalhava em uma farmácia e conseguiu dinheiro para iniciar uma faculdade de Pedagogia em uma universidade particular da região. Logo depois, porém, o casal conseguiu duas vagas de emprego em uma fábrica da Perdigão, em Goiás, e decidiu mudar de estado.
No Centro-Oeste, viveram cerca de seis meses – até Sheila engravidar da primeira filha.
“Quando eu fiquei grávida, eu enjoei a empresa, aquele cheiro de frango… Eu trabalhava no setor de frango. Aí eu pedi para ser mandada embora”, lembra.
Obrigados a mudar de planos, refizeram as malas e voltaram para o Maranhão. Durante a gestação e os primeiros seis meses de vida da bebê, Sheila morou com sua mãe.
Foi tempo suficiente para a avó se apegar tanto à neta que, quando decidiram se mudar novamente para Humberto de Campos, a mãe de Sheila “quase entra em depressão”, segundo sua filha. Mas, na cidade do marido, a maranhense conseguiria recuperar a vaga na farmácia em que havia trabalhado e Wanderson os “bicos” que fazia.
Ainda assim, a situação estava difícil. “A gente passando muito aperto, muita dificuldade, porque lá a gente ganha muito pouco e ainda com um bebê para criar.”
Diante daquela situação, uma prima de Sheila que morava em São Paulo sugeriu que o casal se mudasse para tentar a vida na região Sudeste. Só havia uma questão: Ryellen Marynne, sua filha, com pouco mais de um ano naquela época.
“Quando a gente é mãe, a gente não escolhe. Não daria para eu trazer ela para cá, porque eu ia morar com a minha prima. Então, assim, eu vinha me aventurar. E como a minha mãe era muito apegada com ela, quando eu saí da casa da minha mãe, ela quase entra em depressão. Eu não pensei em mim, eu pensei na minha mãe”, relata Sheila sobre a decisão de deixar a filha no Maranhão até se estabilizar na capital paulista.
O casal chega em São Paulo em 2014 e passa três meses morando com a prima de Sheila, até conseguir juntar dinheiro para o aluguel. Quando finalmente os trilhos pareciam se ajustar, mais uma gestação inesperada.
Depois do susto, a clara noção de que a filha mais velha teria que ficar mais tempo distante da mãe. Naquela época, Sheila recebia uma ajuda de custos do governo, provinda do programa Bolsa Família, que destinava à Ryellen.
Quando Carlos Eduardo, o segundo bebê, nasceu, a família morava no quarto de pensão na Bela Vista, na região central da cidade – onde permaneceram por cerca de dois anos até irem morar na ocupação.
Com mais um filho, a renda da família precisava crescer. O pai das crianças conseguiu convencer o patrão a aumentar sua jornada de trabalho e, consequentemente, seu salário. Wanderson passou a trabalhar 12 horas por dia, entrando ao meio-dia e saindo meia-noite.
Pouco mais de um ano após o nascimento do segundo filho, o marido de Sheila ficou desempregado. Nessa época, ela também estava fora do mercado de trabalho formal e a situação da família piorou outra vez.
Justamente nesse período, como das outras vezes, Sheila descobriu mais uma gravidez inesperada. O período anterior à mudança para a Nove de Julho foi, possivelmente, o mais difícil da família até então.
“Eu quase fico depressiva, porque era mais um bebê, morando em um quarto em que a gente não tinha espaço para nada. Era um fogão, uma cama e só”, relembra.
No início de 2017, a família se muda para a ocupação Nove de Julho. É ali que Sheila vive sua terceira gestação, conseguindo ter acesso aos equipamentos públicos de saúde.
“A primeira gravidez eu estava amparada pela minha mãe e pelo meu pai; a segunda, pelo meu marido e a terceira era por ele também e pelo movimento, porque se eu não tivesse vindo morar na ocupação, não sei nem o que seria de mim.”
A vida pós-MSTC
A maranhense identifica sua mudança para a ocupação como o ponto de virada de sua vida, dizendo que, a partir de 2017, “tudo fluiu”.
Logo após a ida para a Nove de Julho, Wanderson conseguiu um emprego de carteira assinada. Sheila, aproveitando o conhecimento que tinha adquirido ajudando a prima, começou a trabalhar vendendo seus próprios bolos.
No início, ela participou da Cozinha Ocupação Nove de Julho (leia mais) e começou a vender bolos aos domingos, quando a ocupação abre ao público para almoços.
Depois, quando conquistou sua clientela, passou a trabalhar somente com encomendas – que é uma das fontes de renda da família até hoje.
Ainda em 2017, Sheila voltou ao Maranhão com a intenção de trazer sua primogênita para o novo lar da família, mas o impacto do distanciamento era maior do que o esperado.
A menina, com cinco anos naquela época, estava há mais de três anos morando com a avó, sem ver a mãe, e não quis vir para São Paulo. “Ela não fazia muita questão de mim, ela preferia mais a minha mãe”.
Ryellen passou mais três anos afastada de sua mãe. O reencontro da família veio em 2020, quando a irmã caçula de Sheila foi ao Maranhão e a sobrinha decidiu acompanhar a tia na viagem de volta.
Atualmente, a filha mais velha tem 9 anos, seguida por Carlos Eduardo, com 7, e Isabelle Cristina, com 5. Segundo a mãe, ambos possuem acesso aos direitos básicos garantidos às crianças, como educação, saúde, segurança e acesso à cultura.
Os dois mais velhos estudam pela manhã; à tarde, a mãe os leva para um projeto social próximo à Nove de Julho para que consiga trabalhar. Também nesse período é a vez da pequena Isabelle ir à escola.
Entre as idas e vindas diárias, Sheila explica que garantir que as crianças estejam na escola é sempre sua prioridade. O compromisso se explica pelo desejo da mãe de dar condições para que o curso da vida dos filhos seja diferente do seu.
“Eu parei a minha vida, deixei de fazer muita coisa por conta deles. Eu não quero que eles passem por tudo que eu passei e que eu vivo ainda passando, porque eles ainda estão pequenos, ainda tem muito chão pela frente.”
Com a atuação do MSTC, Sheila também sente que os filhos têm amparo em relação à saúde. Recentemente, a mãe começou a desconfiar da possibilidade de Carlos Eduardo se enquadrar no Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Ainda sem diagnóstico, Sheila observa que o menino tem apresentado dificuldade na fala, extrema agitação e falta de concentração.
Foi a assistente social do movimento, em diálogo com a agente de saúde que acompanha os moradores da ocupação, quem conseguiu encaminhar o processo para marcar a consulta com uma fonoaudióloga e dar início ao tratamento em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) no final de setembro deste ano. “Eu passei o problema para elas e elas me ajudaram a resolver”, conta.
Para Sheila, além de promover o acesso à moradia, educação e saúde, o MSTC também possibilita que sua família tenha contato próximo com diferentes manifestações culturais.
Vez ou outra, o movimento realiza exibições de filmes; exposições de arte e shows na própria ocupação. Outras vezes, os moradores ganham ingressos de instituições parceiras. “Eu não vou muito, porque sou muito preguiçosa”, explica ela, dando risada sobre a última opção.
Morar em uma ocupação também deu a Sheila uma rede grande de conhecidos. De migrante quase solitária em terras paulistas, hoje em dia a maranhense tem que se esforçar para passar despercebida. Ela atribui a popularidade a sua ocupação como boleira.
“Todo mundo conhece a Sheila no prédio, até os que estão chegando”, diz ela. Com um perfil reservado, porém, explica que tem mais amizade com os moradores antigos e, mesmo assim, não costuma estar sempre na casa deles. “A gente se respeita muito.”
Hoje, Sheila mora no Residencial Cambridge, uma antiga ocupação do MSTC que se tornou prédio de moradia popular. A família se mudou em 28 de setembro de 2022, quatro anos após ter sido indicada pelo movimento como suplente a uma vaga no residencial.
Para a maranhense, seu exemplo reflete qual deve ser o papel dos movimentos em busca de moradia na vida de uma pessoa.
Segundo ela e outros moradores ouvidos neste projeto, o período morando em ocupação, pagando uma taxa de contribuição menor do que seria o valor de um aluguel em São Paulo (R$ 220 reais, no caso das ocupações do MSTC), deve ser utilizado para “correr atrás de outras coisas”.
“Agora eu posso dizer assim: ‘eu tenho um lar, agora eu não sou mais uma sem-teto’”, comemora.