Morar Direito https://morardireito.com.br Morar Direito Wed, 22 Mar 2023 20:42:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.6.2 https://morardireito.com.br/wp-content/uploads/2022/09/favicon_morar_direito_400x400-150x150.jpg Morar Direito https://morardireito.com.br 32 32 Sobre o projeto https://morardireito.com.br/sobre-o-projeto/ https://morardireito.com.br/sobre-o-projeto/#respond Thu, 10 Nov 2022 01:06:56 +0000 https://morardireito.com.br/?p=700 A questão da moradia na cidade de São Paulo é uma demanda histórica, como demonstram os dados apresentados neste trabalho. Isso quer dizer que um único projeto é incapaz de sanar o problema. 

O projeto reconhece essa complexidade e propõe como contribuição um olhar focado em trajetórias humanas. A partir da temática central, há uma série de recortes: a cidade de São Paulo, o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) e as cinco personagens ouvidas.

As histórias apresentadas são apenas uma parcela dessa realidade complexa e multifatorial. Há outros lados.

Como trabalho jornalístico, porém, o objetivo foi se manter o mais fiel possível ao relato do real, utilizando para isso ferramentas de apuração fundamentais: entrevistas, testemunho em primeira pessoa, pesquisa em documentos e checagem de informações – o direito ao contraditório foi condição inegociável.

Quando abri os olhos para este tema, após escrever uma matéria para a graduação há dois anos, o que me instigou foi investigar como o endereço é estruturante na vida de uma pessoa. Na época, entrevistei uma mestranda da Universidade de São Paulo (USP) que havia pesquisado sobre a saúde mental de moradores de ocupação.

Hoje, analisando o resultado com um certo distanciamento, talvez se note um certo tom redentor na maneira como o MSTC transformou a vida de Amanda, Carmen, Irene, Felipe e Sheila, mas é importante destacar que as histórias não foram escolhidas para fundamentar tese alguma. 

Os moradores foram conhecidos em diferentes visitas à ocupação 9 de Julho. No final, as entrevistas culminaram em perspectivas relativamente otimistas quanto ao movimento.

Por último, destaca-se que a digitalização de todo o conteúdo apurado se tornou possível com o desenvolvimento deste site pela gentil colaboração de Belmiro Carvalho.

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Dos direitos sociais: Lazer https://morardireito.com.br/felipe-figueiredo/ Wed, 02 Nov 2022 02:22:03 +0000 https://morardireito.com.br/?p=462 Se você chegar à ocupação 9 de Julho buscando um “Felipe”, é muito provável que te perguntem “Felipe do brechó?”. “Ele mesmo!”

Felipe Figueiredo, 28 anos, cabelos e olhos castanhos, corpo esguio. Mora na ocupação coordenada pelo Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) há seis anos. Seu apartamento fica no primeiro andar do edifício. No terceiro pavimento, que abriga os escritórios administrativos, encontra-se a loja comandada por Felipe.

Quando chegou ao prédio, o pequeno comércio atuava somente no segmento brechó – revendendo roupas de segunda mão. Na gestão de Felipe, a loja lançou até uma linha exclusiva de moletons, em parceria com o Instituto Oyá.

Também colaboram com o acervo a marca Alastra e algumas estilistas, como Ale Valois e Naya Violeta, que já desfilou suas criações no São Paulo Fashion Week.

Além da loja física, que funciona de quarta-feira a domingo na rua Álvaro de Carvalho, 427, a @lojamstc também está no Instagram.

Segundo Felipe, o empreendimento tem tido lucro suficiente para se manter, além de pagar o seu salário e o de mais uma funcionária nas vezes em que é necessário – nos dias de evento, por exemplo, quando a movimentação no prédio aumenta.

Com as novidades, Felipe explica que o comércio deixa de ser um brechó e passa a ser uma loja. 


Orgulhoso das mudanças que ajudou a promover, o jovem diz que está apenas começando. “Já está boa [a loja], mas ainda não está bom, vai ficar melhor”, diz em meio a uma risada.

O mesmo raciocínio ele usa para explicar sua relação com a moda. “A gente entra para fazer um trabalho, então, para fazer bem feito, você estuda, você se aperfeiçoa no assunto. Eu me aperfeiçoei, estou me aperfeiçoando.”

A dedicação, no entanto, não significa que Felipe deseje continuar atuando nessa área.

No início deste ano, o empreendedor iniciou um curso de marketing na Faculdade das Américas (FAM). Com o primeiro semestre completo, no meio de 2022, a graduação teve de ser trancada em razão de dificuldades financeiras.

Agora, os planos de Felipe são retomar os estudos no segundo semestre de 2023, quando conseguir transferir sua matrícula para uma das universidades que possuem parceria com o MSTC, disponibilizando descontos ou bolsas integrais.

Apesar de concluir o Ensino Superior ser um sonho, o jovem paulista tem convicção de que conseguirá cumprir a meta. “Já está perto, eu vou fazer. Então sonho é só ter o diploma na mão, timbrado”, explica com um sorriso no rosto.

A educação é apenas uma das áreas de sua vida que considera ter sido transformada desde que se mudou para a ocupação 9 de Julho, em 2016. 

Felipe chegou ao local com sua mãe e irmã. Naquela época, as duas foram para um apartamento e o rapaz para outro, com os três se ajudando quando necessário.

No final de 2016, Felipe participou da ação para ocupar o prédio que hoje é a sua casa. Para ele, aquela foi uma das “melhores” ocupações, porque não teve represália policial.

O jovem avalia que o clima pacífico teria sido garantido pela presença de profissionais da imprensa que cobriam o ato.

Ele lembra que conheceu o MSTC através informações que circulam de “boca em boca”.

Sua mãe já tinha contato com movimentos de moradia há pelo menos duas décadas. Isso porque, no final dos anos 90, a família do jovem se mudou do interior de São Paulo para a capital e sofreu um golpe de “apartamento fantasma”: pagaram um local para morar e, quando chegaram, a residência não existia.

Tendo perdido todo o dinheiro que tinham e lidando com a descoberta de um câncer no pai, a família Figueiredo foi morar em uma ocupação do Movimento de Moradia do Centro (MMC) próxima à praça da Sé. 

O pai do Felipe faleceu em 2002. Depois disso, sua mãe chegou a se relacionar com outro homem e a família morou de aluguel por alguns anos.

Em 2013, a matriarca conheceu o MSTC e passou a frequentar as reuniões de base do grupo. Cerca de três anos mais tarde, em 2016, quando a situação financeira chegou ao limite e eles começaram a ter que escolher entre comer, vestir ou pagar o aluguel, que a mãe e os dois filhos tiveram que ir viver na ocupação 9 de Julho.

Logo que se mudou, Felipe resolveu que estava na hora de rever suas pendências. A primeira era retomar os estudos que haviam sido interrompidos no primeiro ano do Ensino Médio. No final de 2017, o rapaz estava com seu diploma. 

O ano seguinte foi uma montanha russa de acontecimentos. A mãe de Felipe finalmente conseguiu se aposentar, aos 62 anos, com a ajuda da assistência social do MSTC. Até então, os esforços individuais dele e da irmã não tinham sido suficientes. 


Ainda em 2018, porém, a saúde da idosa, que era diagnosticada com osteoporose e diabetes, começou a se deteriorar. Nos próximos dois anos, até o falecimento da mãe, Felipe e a irmã se dedicaram aos seus cuidados. 

Em 2020, além da partida de sua mãe, Felipe teve que lidar com as consequências da pandemia de Covid-19. Nessa época, ele ainda não estava à frente do brechó e começou a atuar na Casa Verbo – uma organização filantrópica encabeçada pelo MSTC para arrecadar itens de primeira necessidade, como alimentos, artigos de higiene pessoal, entre outros. As doações eram destinadas a integrantes do movimento, como Felipe, e pessoas de fora do grupo.

“Essa casa não só ajudou o movimento, como ajudou mais 51 núcleos da cidade de São Paulo, como Parelheiros, a Cracolândia, as mulheres que trabalham na Luz”, explica.

Depois que os números da Covid diminuíram no país, Felipe assumiu o brechó e voltou a tocar seus planos. No segundo semestre de 2022, com a matrícula da faculdade trancada, conseguiu parcelar uma antiga dívida com o Serasa para limpar seu nome. 

Em breve, também espera finalizar um tratamento dentário que há muito tempo vem sonhando. Segundo ele, é apenas uma questão estética, para “ficar mais bonito mesmo, porque não é porque você é sem-teto que você não tem que se cuidar.” 

As relações sociais

Enumerando as mudanças que observa na sua vida desde que ingressou no MSTC, Felipe, que chegou à ocupação no auge dos seus 22 anos, diz com convicção que o movimento possibilita que ele desfrute da cidade e desenvolva relações sociais. 

Além dos direitos tradicionalmente lembrados quando se pensa na Constituição Federal, como educação, saúde e trabalho, por exemplo, o lazer também é assegurado pela Carta Magna brasileira – já na primeira formulação do artigo 6º do capítulo II, que foi alterado três vezes desde 1988.

Para explicar como se deu a mudança da sua relação com o lazer antes e depois de ter ido morar na ocupação, Felipe diz que, em primeiro lugar, considera difícil fazer amizade em São Paulo, principalmente quando não se tem dinheiro para bancar a diversão.

“Dentro de casa você não faz amizade. Mesmo para você ter o celular, você precisa ter dinheiro para colocar crédito. Ou você vai ficar 24 horas em uma praça que tenha Wi-Fi”, argumenta.

No período anterior ao movimento, o jovem lembra que até mantinha contato com alguns colegas de trabalho, ocasionalmente indo juntos para festas, mas não sentia que integrava uma “rede de amigos”.

Sobre a vida que deixou para trás, Felipe diz que vivia em “uma caixinha do sistema: trabalho, casa, algumas vezes você curte – escolhendo se você vai comer, se você vai vestir, se você vai pagar –, tendo sonhos que uma hora se tornam impossíveis, porque sempre a inflação está alta e o salário está baixo. E não fecha nunca a conta do que você quer comprar”.


Naquela época, Felipe se considerava mais festeiro. Hoje em dia, com as responsabilidades da vida adulta, seu tipo de divertimento mudou.

Embora continue um grande apreciador da vida fora de casa, o jovem prefere viajar, ir a parques, cinemas, teatros e andar de bicicleta. “Pouco shopping e balada”, conta.

A imersão à vida cultural paulistana, Felipe associa diretamente ao MSTC. Desde que entrou para o movimento, conheceu o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), o Museu Judaico de São Paulo, a Bienal, dentre outros polos culturais. 

Segundo Felipe, o MSTC também ajuda os mais jovens a garantir meia-entrada em atividades de lazer, uma vez que direciona os membros a emitirem um Número de Identificação Social (NIS).

A numeração criada pelo Governo Federal possibilita o cadastro em diversos programas de assistência do governo, como o Auxílio Brasil, o seguro-desemprego e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

O NIS também é um dos requisitos do governo para a emissão da Identidade Jovem, ou ID Jovem – um documento concedido a jovens baixa-renda de 15 a 29 anos que “possibilita acesso aos benefícios de meia-entrada em eventos artístico-culturais e esportivos e também a vagas gratuitas ou com desconto no sistema de transporte coletivo interestadual, conforme disposto no Decreto nº 8.537, de 5 de outubro de 2015”, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Além disso, o MSTC promove seus próprios eventos culturais, como apresentações de espetáculos teatrais, shows, cursos e exposições. 

Pelos corredores da 9 de Julho, o jovem paulista já cruzou com diversos artistas, como Gregório Duvivier, Liniker, Linn da Quebrada, Bela Gil, Emicida, Mano Brown, Maria Gadú e Bia Ferreira.

Mas ele não faz grande alarde sobre os encontros. “Passa, deixa entrar, como outra pessoa qualquer”, conta. Os momentos de tietagem, claro, acontecem quando Felipe gosta muito de alguém que adentra os portões da ocupação.

Ele lembra de ter ido falar com Linn da Quebrada e lamenta não ter se dado conta de que, ao lado da cantora, estava Liniker. “Idiota”, diz ele, brincando sobre si mesmo enquanto revira os olhos em uma risada.

A relação Felipe, arte e MSTC começou logo que ele chegou ao movimento dos sem-teto. Seu primeiro trabalho por lá foi como guia da galeria “Reocupa” – um espaço de arte no saguão da ocupação 9 de Julho, criado pelo MSTC em parceria com o coletivo Aparelhamento.

A galeria concebeu três exposições ao longo do primeiro ano em que permaneceu em funcionamento. Segundo Felipe, 350 artistas expuseram suas obras.

Naquele ano, uma votação feita pela revista Select premiou a segunda exposição da Reocupa, intitulada “O Que Não É Floresta É Prisão Política”, como a segunda melhor exposição coletiva institucional de 2019.

O rapaz tomou gosto pela coisa. Até pensou em cursar Artes Cênicas, mas com o “país do jeito que está, não tem como viver com arte. Além de pobre, sem-teto, ainda optar por ser artista… Eu preferi optar pelo Marketing para garantir o sustento, trabalho. E, depois, quem sabe, lá na frente, um artista”.

Felipe pensa bastante sobre o seu futuro e tem consciência de que a vida na ocupação é temporária. “Eu já cheguei aqui, mas não está bom, não quero ficar aqui. Isso aqui não é minha expectativa, eu estou passando por aqui. Vou deixar o meu melhor, mas eu quero mais.”

Como os outros moradores do MSTC ouvidos neste projeto, Felipe conta que o objetivo do movimento não é ser a solução definitiva na vida de seus membros e, sim, garantir condições para que consigam atingir seus objetivos e assegurar seus direitos.

Por essa razão, o jovem tem usado esse tempo para resolver pendências e juntar dinheiro. 

“É muito básico você desembolsar 220 reais [contribuição paga pelos moradores da ocupação] e quando as oportunidades chegarem você falar: ‘ah, eu não tenho’. Por quê? Não guardou, não pensou. Então é para isso que eu estou me preparando, porque se eu não conseguir financiamento aqui, eu vou ter que ter o nome limpo para alugar um lugar, para fazer a mudança, para sair com as minhas coisas daqui, porque aqui é uma ocupação. Uma hora ou outra ou vai ter um projeto ou vai ter uma reintegração.”

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Renata Souza https://morardireito.com.br/renata-souza/ https://morardireito.com.br/renata-souza/#respond Wed, 19 Oct 2022 22:39:24 +0000 https://morardireito.com.br/?p=403 Filha de nordestinos, nasceu na capital paulista há 23 anos. Desde então, ainda mora na mesma casa onde nasceu. Hoje, além de estudante, é tia orgulhosa da Bela e da Catarina.
Escolheu o Jornalismo ansiosa por ouvir histórias e confiante de que narrativas podem mudar o mundo. Em sua breve carreira jornalística, foi estagiária da CNN Brasil e, hoje, integra a produção do mesmo veículo.
Na CNN, teve a oportunidade de conhecer o jornalismo televisivo e digital. Também pôde participar de algumas coberturas históricas, como a tragédia da Covid-19 e as eleições gerais de 2022.

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Dos direitos sociais: Trabalho https://morardireito.com.br/irene-da-silva/ Wed, 19 Oct 2022 14:26:19 +0000 https://morardireito.com.br/?p=337 一 Bom dia, dona Irene!

Essa deve ser a frase que Irene da Silva, porteira da ocupação 9 de Julho, em São Paulo, mais ouve. Em uma conversa de cerca de 30 minutos foram cinco cumprimentos – fora os transeuntes que, ao perceber a entrevista, passaram quietos. Sentada em uma cadeira próxima à parede do pequeno espaço que compõe a portaria, Irene utiliza uma espécie de estaca de madeira para apertar o botão que abre a porta, localizado na outra extremidade do cômodo.

Apesar de dizer que o trabalho é tranquilo e que nunca presenciou nenhuma cena desconfortável, a senhora, de 69 anos, não nega a correria de sua função. No dia em que conversamos – a que ela se referiu como “quietinho” – o movimento era menos intenso do que o habitual. Ainda assim, Irene se mantinha atenta às câmeras e ao movimento de membros do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), da prefeitura de São Paulo, que haviam ido até a ocupação atualizar o cadastro dos moradores. 

Em dias mais movimentados, a porteira chega a receber centenas de visitantes – quando há agendamento de escolas, por exemplo – e até equipes de filmagem – que vão desde jornalistas até produtores audiovisuais. O mês de setembro foi um desses em que a agitação tomou conta dos corredores do edifício. Durante a semana, caixas enfileiradas na entrada da ocupação aguardavam o deslocamento de dezenas de famílias em mudança para o residencial Cambridge. Nas escadas, os moradores se revezavam entre subidas e descidas levando os objetos. A quietude também não surgia aos finais de semana, quando a 9 de Julho se enchia em eventos de campanha de Carmen Silva – que pleiteou uma vaga na Assembleia Legislativa de São Paulo nas eleições de 2022.

Todos tinham pressa naquelas semanas: os que se mudariam para um apartamento próprio e os que aguardavam uma vaga na ocupação.

Na véspera de sua mudança, dona Irene comandava a portaria com agitação. Agitação e esperança. “Me deu até dor de cabeça quando ela falou: ‘você pode mudar amanhã’”. Naquele 14 de setembro não era apenas a porteira que vislumbrava um sonho se tornando realidade.

一 Já tem data a sua mudança?

一 Ainda não me falaram nada, mas, se Deus quiser, vai ser logo.
Você muda também ou continua aqui?

一 Não mudo ainda não, mas, se Deus quiser, está perto.

一  Ah, sim. Se Deus quiser. 

A conversa das duas desconhecidas em frente à portaria, ilustrava o clima da ocupação naquela semana. No caso de Irene, estar prestes a se mudar para uma casa própria significa o resultado de décadas de trabalho duro. Natural do Rio Grande do Norte, a porteira veio para São Paulo ainda jovem, sozinha, em busca de emprego. O deslocamento ocorreu junto ao de dezenas de milhares de nordestinos que deixaram suas casas na esperança de encontrar melhor qualidade de vida em outras regiões do país – especialmente no Sudeste – ao longo do século passado.

Em Natal, a potiguar deixou uma família inteira. Em São Paulo, encontrou o que procurava: trabalho. A primeira oportunidade que teve no novo endereço foi como empregada doméstica. 

Naquela época, há mais de 35 anos, a legislação brasileira ainda não regulamentava as condições de trabalho da categoria. Somente em 2015, na gestão Dilma Rousseff (PT), o país aprovou uma lei para reger o trabalho doméstico e assegurar aos profissionais da área direitos como FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), seguro-desemprego e salário-família. Mas, tendo como patrão um importante advogado da época, Irene conseguiu trabalhar com carteira assinada. Nesta função, passou anos. Quando a família decidiu deixar o Brasil e se mudar para a Flórida, nos Estados Unidos, Irene preferiu não os acompanhar. 

一  Já tinha uma família longe, ir mais longe ainda?

Quando se mudou para o Sudeste, sua mãe e irmãs permaneceram no Rio Grande do Norte. Hoje, apenas a matriarca continua por lá, às vésperas de completar 100 anos. E não foi por falta de vontade da filha que a mãe não veio para São Paulo. Na verdade, a escolha foi dela própria. A solução encontrada, então, foram as visitas anuais de Irene.

Depois que os antigos patrões foram viver nos EUA, Irene conseguiu emprego na rede Soho Hair – que hoje conta com mais de 30 unidades de salões de beleza espalhadas por São Paulo. Entrou como funcionária da limpeza e saiu como “office boy”, em um intervalo de mais de dez anos até pedir demissão. O motivo foram os enjoos constantes ao cheiro de tinta quando engravidou da filha mais velha, Kananda.

Do salão, Irene chegou a integrar a equipe de limpeza da Petrobras, antes de um longo período fora do mercado de trabalho, incentivado pelo marido. Até retomar ao mercado, teve mais uma filha: Thainara. Também foi nesse intervalo, logo após completar 60 anos, que conseguiu garantir sua previdência. Segundo ela, o processo foi simples. Não foi necessário advogado e em poucos dias recebeu a carta aprovando sua aposentadoria. Ainda assim, o desejo de retornar ao trabalho falou mais alto.

Nessa época, Irene ainda morava de aluguel e foi contratada como cuidadora de uma idosa que vivia em um prédio em frente à ocupação 9 de Julho. Mais ou menos no mesmo período, seu marido faleceu e a vida saiu dos trilhos. O aluguel ficou caro demais para uma viúva mãe de duas adolescentes. E é neste momento, vivendo a terceira idade, que o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) entra na vida de dona Irene. 

Trabalhar para ter casa; ter casa para trabalhar

Mesmo tendo trabalhado a maior parte da vida com a carteira assinada, juntando seu FGTS, Irene levou 69 anos para conquistar a chave de uma casa própria. Ao longo dos anos, chegou a simular compras de imóveis na Caixa Econômica Federal, mas em nenhuma das ocasiões conseguiu preencher todos os requisitos.


Com as dificuldades provocadas pela morte do marido, Irene recorreu ao MSTC. A princípio, 8 anos atrás, mudou-se para o Cambridge – um antigo prédio na avenida Nove de Julho que já foi hotel, casa noturna e ocupação
. Algum tempo depois, sob a coordenação do MSTC, o edifício foi selecionado pelo projeto “Minha Casa, Minha Vida – Entidades” para passar por uma reforma e se tornar habitação popular. Quem morava no Cambridge nessa época teve de encontrar um novo endereço até que os apartamentos ficassem prontos e houvesse a possibilidade de financiamento.

Irene conseguiu um apartamento na ocupação 9 de Julho e foi morar até que terminasse a reforma daquele que se tornaria o Residencial Cambridge. Foram quatro anos neste novo endereço – o mesmo período de tempo desde que se tornou porteira. Tendo passado dos 65 anos, ela conta que não via mais a possibilidade de conseguir um emprego formal. E, embora tenha a segurança da aposentadoria como mínimo para sobreviver, o trabalho sempre esteve presente em sua vida.

Na portaria, trabalha de segunda a sábado no turno diurno. Aos domingos, faz um “bico” limpando o escritório de um conhecido. Quando não está a serviço, gosta de ficar em casa na companhia de seus dois gatos, já que, desde que ficou viúva, optou por não dividir a casa com mais nenhum parceiro. 

一 Tem também a minha filha que é solteira, mas é assim: uma hora está aqui, outra hora está ali. Aí fica na casa do namorado, uma semana, duas; aí vem para casa, dois, três dias, e vai de novo. Diz ela que agora vai casar…

Dona Irene se refere à filha mais nova, Thainara. A mais velha é casada e mora em outro apartamento na ocupação 9 de Julho com marido e filho – Heitor, de 3 anos, de quem a avó pode passar minutos falando e mostrando, orgulhosa, as fotos. 

Com o mesmo orgulho, Irene fala sobre a horta da ocupação. Ela lembra que, quando o prédio foi ocupado, em 2016, além da tonelada de lixo acumulado por anos de abandono, o local estava tomado por mato. Para virar horta, o espaço em frente à portaria – que hoje abriga plantação de alface, coentro, beterraba, escarola e outros vegetais – contou com as mãos da idosa. Até hoje, continua como principal responsável, embora conte com ajuda de alguns moradores. No mesmo local, os ocupantes também mantêm um sistema de compostagem para produzir o adubo utilizado na horta.

Quando saem da terra, os alimentos têm duas possibilidades como destino final: a Cozinha Ocupação 9 de Julho, que abre ao público para servir almoço aos domingos, ou a casa dos próprios moradores. Mas, neste último caso, Irene ressalta que depende de quem é o morador. Misturando um olhar de indignação e um leve sorriso, ela explica que acha injusto que todos se beneficiem do resultado, sem ajudar no processo.


Novo lar

A porteira da Ocupação 9 de Julho se mudou para o Residencial Cambridge dia 15 de setembro de 2022. No dia 12, Irene tinha contado que a mudança estava prevista para a próxima semana – faltava ainda assinar um documento. Dois dias depois, porém, recebeu a ligação dizendo que estava tudo pronto e que a mudança ocorreria no dia 15. Em casa já estava tudo preparado, apenas aguardando o carreto. Quem não estava pronta era a dona dos móveis, que teve até dor de cabeça quando recebeu a notícia. Na verdade, não é que não estava pronta, Irene aguardou tanto por esse dia que quando enfim se tornou realidade não conseguiu conter a emoção.

Mas a dor de cabeça que sentiu quando soube que se mudaria em poucas horas foi pontual. Em geral, a saúde da idosa é “de ferro”. Segundo ela, não costuma precisar de atendimento médico frequentemente, embora faça suas consultas de rotina. O único alerta atual é o colesterol alto. 

E não é como se dona Irene estivesse tentando esconder alguma fragilidade. Durante a conversa na portaria, sua ex-patroa – que morava em frente à 9 de Julho, e atualmente vive em Sorocaba – mandou um áudio no WhatsApp contando as últimas notícias de sua vida e, sem saber, confirmando o que contava a amiga. Ao final da mensagem, a voz do outro lado da tela pergunta como está Irene:

一 E você? Está tudo bem como sempre, né? Porque você não deixa a peteca cair, né? Isso que é bom em você, essa segurança, essa firmeza que você tem!

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Dos direitos sociais: Educação https://morardireito.com.br/amanda-regina/ Wed, 19 Oct 2022 14:25:20 +0000 https://morardireito.com.br/?p=335 Da entrada do prédio até a porta de seu apartamento, Amanda subiu falando sobre os planos profissionais mais recentes da sua filha mais velha. Antes, queria ser médica. Agora, jornalista.

Em frente à entrada de sua casa, pediu para seu marido segurar o cachorro. Um vira-lata caramelo grande e brincalhão. 

Do lado de dentro, cheiro de morango com chocolate. Mais tarde naquele mesmo dia seus filhos venderiam os espetos na ocupação 9 de julho. A atividade nasceu do desejo de sua menina, Alice – a mesma que quer seguir os caminhos da reportagem – de viajar para Nova York daqui três anos, quando completar seus 18.

Amanda Regina Cayres tem 35 anos, é advogada, casada e mãe de três filhos: Alice, 15, Ryan, 14, e Valentina, 3. Há alguns meses mora no Residencial Cambridge, o antigo Cambridge Hotel, na avenida Nove de Julho, região central de São Paulo.

Na década de 50, o Cambridge era uma das hospedagens mais cobiçadas da capital paulista. Por lá se hospedaram desde membros anônimos da elite até celebridades internacionais, como o cantor estadunidense Nat King Cole, em 1959. Mais de 60 anos depois, um dos apartamentos do edifício se tornou lar da família de Amanda – uma das primeiras a se mudar para o residencial depois da reforma que o transformou em um prédio de moradia popular.

Até conseguir realizar o sonho da casa própria, no entanto, a advogada passou 11 anos sem ter acesso ao direito da moradia – vivendo em ocupações do MSTC. Apesar disso, foi neste mesmo período em que conseguiu fugir das estatísticas do país e se formar em um curso superior.

Nascida na zona Leste de São Paulo, no bairro de Belém, Amanda conheceu o Movimento Sem-Teto do Centro em 2009. Desempregada, sem casa própria e com dois filhos pequenos para sustentar – Alice no auge dos seus dois anos e Ryan prestes a completar um –, a renda do marido não era mais suficiente. Foi o irmão mais novo da paulistana que a apresentou ao movimento. Sem saber ao certo do que se tratava, mas sem nenhuma alternativa, o MSTC foi um ponto de esperança. 

Amanda e o marido começaram, então, a frequentar as reuniões de base do movimento. “Para a gente entender toda a dinâmica do movimento, a estratégia. Para a gente entender o coletivo, entender que a gente vai ocupar um espaço e, a partir dali, tudo é no coletivo”, explica.

Em 2009, a família Cayres foi morar na ocupação Nove de Julho. Dois meses depois, o pior cenário que poderiam imaginar: o prédio foi reintegrado pela polícia sob a alegação de que o edifício oferecia riscos ao grupo. Sem ter para onde ir, os dois adultos e as duas crianças permaneceram cerca de dez dias desabrigados na avenida Nove de Julho.


Junto da família de Amanda, outras pessoas permaneceram na avenida após serem retiradas do prédio. A situação era insustentável. Para dispersar o agrupamento de sem-tetos, chegou a tropa de Choque da Polícia Militar estadual.

A advogada lembra do grupo correndo pela Nove de Julho para fugir das bombas de gás lacrimogêneo, enquanto davam a volta pela avenida até retornarem ao ponto de partida. “E aí foi o momento em que eles viram que dessa forma não era solução para a nossa questão”, conta.

Como alternativa, a prefeitura de São Paulo decidiu atender às famílias em um abrigo temporário próximo à região. Por ali, o grupo ficou até ser cadastrado para receber uma ajuda de custo. Amanda não lembra exatamente o valor do auxílio nem por quanto tempo recebeu, mas diz ter sido algo entre seis meses e um ano. Com o dinheiro, conseguiram alugar um quarto para abrigar os quatro Cayres. 

Os custos de um teto

Sob a proteção de um teto e reinserida no mercado de trabalho, Amanda pôde olhar para o sonho de se tornar advogada. Antes, teve que prestar uma prova para concluir o último ano do ensino médio – interrompido por uma gravidez inesperada aos 19 anos. 

Quando decidiu que faria um curso superior, a paulistana trabalhava em uma organização social há cerca de um ano. Os chefes, vendo sua situação – jovem, mãe, periférica e cheia de vontade de mudar de vida –, decidiram promovê-la. Era o detalhe que faltava. No mês seguinte, em julho de 2010, aos 23 anos, Amanda iniciou o curso de Direito na Universidade Paulista (Unip).

Mesmo com os dois adultos trabalhando, a renda da família começou a não ser suficiente para sustentar os filhos, bancar o aluguel e pagar a faculdade de Amanda. Foi então que decidiram ir morar com uma tia no Parque Residencial Cocaia, no bairro do Grajaú, extremo Sul de São Paulo. Lá, os custos de ter um teto deixaram de ser em reais e passaram a ser em tempo.

Separada por quase 40 quilômetros de onde estavam o local de trabalho e a universidade, a rotina de Amanda começou a ser dar conta de estar em todos os lugares que precisava. Metade do dia era dedicada às aulas e a outra metade ao trabalho. Como muitos paulistanos, uma parte considerável do seu tempo diário ficava no deslocamento. De acordo com o Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), naquele mesmo ano em que Amanda ingressou na faculdade, 957.583 pessoas que trabalhavam fora do domicílio e retornavam para seus lares diariamente gastavam entre 1 e 2 horas em deslocamento no município de São Paulo.

Apesar do desgaste pessoal, quem falou mais alto foi a voz de mãe: entre cumprir todas as obrigações, não sobrava tempo para estar com as crianças. “A única alternativa para eu conseguir continuar estudando e estar com os meus filhos era voltar para a ocupação”, lembra. 


Mesmo entendendo que no imaginário popular integrantes de grupos que defendem o direito à moradia por meio de ocupações são pessoas que “querem morar de graça”, em suas próprias palavras, Amanda diz que naquele momento escolheu lutar pelos seus direitos e não apenas ter uma casa, mas ter uma casa que lhe proporcionasse condições de estudar, trabalhar e cuidar de seus filhos.

Em 5 de novembro de 2011, a paulistana vai morar na Ocupação Rio Branco, também coordenada pelo MSTC. No início, por conta da experiência anterior de reintegração de posse, Amanda decidiu não levar seus filhos. As crianças permaneceram com a avó paterna até que as coisas estivessem estáveis. Quando conseguiram vaga na creche, Alice e Ryan puderam se juntar aos pais. Ali, em um dos apartamentos do prédio de número 53 da avenida Rio Branco, a família morou por oito anos. Também foi nesse espaço que Amanda conseguiu se formar como advogada.

Embora a Constituição Federal assegure o direito à Educação, o acesso ao Ensino Superior ainda é um desafio para o Brasil. A meta do Plano Nacional de Educação (PNE), equivalente à lei nº 13.005, é garantir que 33% dos jovens de 18 a 24 anos estejam matriculados na educação superior até 2024. 

No ano em que Amanda ingressou, 2010, menos de 20% da população dessa faixa etária frequentava o Ensino Superior, segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). 

Em 2016, quando a advogada se formou, o Anuário Brasileiro de Educação Básica, elaborado pela organização Todos Pela Educação com base em dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), aponta que 20,7% das pessoas entre 18 e 24 anos frequentavam o Ensino Superior. 

No último anuário divulgado, referente a 2020, a taxa estava em 23,8% – quase 10 pontos percentuais de distância para a meta do PNE. 

Neste ano, será a primeira vez, desde que o Todos Pela Educação começou a compilar os dados, em 2012, que o anuário não será publicado. Segundo a entidade, “isso acontece em virtude das mudanças no formato de divulgação do Censo Escolar da Educação Básica, Censo da Educação Superior e Enem, todos de 2021. Essas divulgações deixaram de fornecer informações importantes sobre alunos, professores e gestores, os chamados “microdados”, utilizados para o cálculo de muitos dos indicadores disponíveis na publicação”.

De acordo com o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), a mudança ocorre em adequação à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

Desde que se formou, Amanda atua na área criminal e na social. Em 2020, chegou a abrir um escritório de advocacia em sociedade, que foi encerrado na metade de 2022. Hoje, trabalha sem vínculo com nenhuma empresa.

Formada, trabalhando e abrigada, a advogada se emociona ao pensar em quais são seus sonhos atuais. Entre lágrimas, ela diz que seu maior desejo atualmente é ajudar outras pessoas que se encontram na situação em que um dia esteve a conquistarem seus direitos.


Sobre como faz isso, Amanda responde imediatamente: “Eu acho que quando eu levo a minha verdade para os outros. Quando eu vou nas comunidades, quando eu vou atrás daqueles que sofrem o que a Amanda sofreu lá atrás. E eu levo a informação, as possibilidades. A gente fala assim que o mundo está informatizado, a internet, quem quiser acessar a informação tem… Mas ainda é muito utópico, sabe? Tem pessoas que realmente sofrem, quem realmente não tem acesso a nada. É isso.”

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Dos direitos sociais: Proteção à maternidade https://morardireito.com.br/sheila-santos/ Wed, 19 Oct 2022 14:24:53 +0000 https://morardireito.com.br/?p=333 Grávida do terceiro filho, vivendo em um quarto de pensão com o marido desempregado, Sheila não faz ideia de como resolver seus problemas. Nos últimos tempos, tem dias que até para comer é preciso contar com a sorte de alguém ajudar.

O dinheiro que ela ganha ajudando a prima a fazer bolos para vender para lojistas do shopping Higienópolis, em um dos bairros mais nobres da capital paulista, não é suficiente nem para o aluguel. 

A possibilidade de qualquer dia faltar o dinheiro do cômodo e a família ser despejada a assombra. E há também outros fantasmas perturbando a mulher.

Sua primogênita está vivendo com a avó no Maranhão, enquanto a mãe tenta ganhar a vida em São Paulo. Por aqui, o quarto, que já é pequeno para os três moradores atuais, ficará insustentável com a chegada da bebê que está gestando.

Tudo isso a faz pensar que talvez seja hora de criar coragem e encarar a única solução que tem em vista. Foi a esposa de um colega do marido que apresentou a alternativa.

Perto dali, na avenida Nove de Julho, um edifício acabou de ser ocupado por um movimento de moradia. Sheila visitou o lugar e não ficou muito contente: o prédio, que ficou anos abandonado, não parece o lugar ideal para criar seus filhos. 

Na equação que tenta resolver, ainda há o medo. Suas primas lhe disseram que essas ocupações são perigosas… A polícia pode entrar a qualquer momento e tirar todos dali, não importando se há ou não crianças. Mas que opção ela tem? Onde está, o despejo é uma questão de tempo.


Foi assim que Sheila Santos decidiu ir morar na ocupação Nove de Julho, no final de 2016. A mudança aconteceu em janeiro do ano seguinte, um mês depois que seu marido, Wanderson Teixeira, conheceu o local.

Instalados na nova residência, o casal começou a frequentar as reuniões semanais do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) para entender a dinâmica da organização.

Como fazia pouco tempo que o antigo prédio do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) havia sido ocupado (leia mais), restava muito trabalho a ser feito. Pouco a pouco, os engenheiros aliados do movimento iam liberando os andares da construção para receber as famílias. 

Nesse meio tempo, enquanto se integrava ao grupo e se familiarizava com a líder do movimento, Carmen Silva, Sheila lembra que começou a pegar confiança no MSTC.

Junto de outras centenas de sem-teto, a maranhense, que chegou em São Paulo sozinha com o marido, finalmente se sentiu amparada. A partir dali, mesmo se a polícia realizasse uma reintegração de posse – como se ameaçou algumas vezes –, ela sentia que não estaria mais sozinha.


Sheila se casou jovem, aos 19 anos. Antes, teve tempo de concluir o Ensino Médio. Após o matrimônio, foi morar na cidade do marido, Humberto de Campos, no interior do Maranhão.

Nessa época, trabalhava em uma farmácia e conseguiu dinheiro para iniciar uma faculdade de Pedagogia em uma universidade particular da região. Logo depois, porém, o casal conseguiu duas vagas de emprego em uma fábrica da Perdigão, em Goiás, e decidiu mudar de estado.

No Centro-Oeste, viveram cerca de seis meses – até Sheila engravidar da primeira filha. 

“Quando eu fiquei grávida, eu enjoei a empresa, aquele cheiro de frango… Eu trabalhava no setor de frango. Aí eu pedi para ser mandada embora”, lembra.

Obrigados a mudar de planos, refizeram as malas e voltaram para o Maranhão. Durante a gestação e os primeiros seis meses de vida da bebê, Sheila morou com sua mãe.

Foi tempo suficiente para a avó se apegar tanto à neta que, quando decidiram se mudar novamente para Humberto de Campos, a mãe de Sheila “quase entra em depressão”, segundo sua filha.  Mas, na cidade do marido, a maranhense conseguiria recuperar a vaga na farmácia em que havia trabalhado e Wanderson os “bicos” que fazia.

Ainda assim, a situação estava difícil. “A gente passando muito aperto, muita dificuldade, porque lá a gente ganha muito pouco e ainda com um bebê para criar.”

Diante daquela situação, uma prima de Sheila que morava em São Paulo sugeriu que o casal se mudasse para tentar a vida na região Sudeste. Só havia uma questão: Ryellen Marynne, sua filha, com pouco mais de um ano naquela época.

“Quando a gente é mãe, a gente não escolhe. Não daria para eu trazer ela para cá, porque eu ia morar com a minha prima. Então, assim, eu vinha me aventurar. E como a minha mãe era muito apegada com ela, quando eu saí da casa da minha mãe, ela quase entra em depressão. Eu não pensei em mim, eu pensei na minha mãe”, relata Sheila sobre a decisão de deixar a filha no Maranhão até se estabilizar na capital paulista.

O casal chega em São Paulo em 2014 e passa três meses morando com a prima de Sheila, até conseguir juntar dinheiro para o aluguel. Quando finalmente os trilhos pareciam se ajustar, mais uma gestação inesperada.

Depois do susto, a clara noção de que a filha mais velha teria que ficar mais tempo distante da mãe. Naquela época, Sheila recebia uma ajuda de custos do governo, provinda do programa Bolsa Família, que destinava à Ryellen.

Quando Carlos Eduardo, o segundo bebê, nasceu, a família morava no quarto de pensão na Bela Vista, na região central da cidade – onde permaneceram por cerca de dois anos até irem morar na ocupação.

Com mais um filho, a renda da família precisava crescer. O pai das crianças conseguiu convencer o patrão a aumentar sua jornada de trabalho e, consequentemente, seu salário. Wanderson passou a trabalhar 12 horas por dia, entrando ao meio-dia e saindo meia-noite.

Pouco mais de um ano após o nascimento do segundo filho, o marido de Sheila ficou desempregado. Nessa época, ela também estava fora do mercado de trabalho formal e a situação da família piorou outra vez.

Justamente nesse período, como das outras vezes, Sheila descobriu mais uma gravidez inesperada. O período anterior à mudança para a Nove de Julho foi, possivelmente, o mais difícil da família até então. 

“Eu quase fico depressiva, porque era mais um bebê, morando em um quarto em que a gente não tinha espaço para nada. Era um fogão, uma cama e só”, relembra.


No início de 2017, a família se muda para a ocupação Nove de Julho. É ali que Sheila vive sua terceira gestação, conseguindo ter acesso aos equipamentos públicos de saúde.

“A primeira gravidez eu estava amparada pela minha mãe e pelo meu pai; a segunda, pelo meu marido e a terceira era por ele também e pelo movimento, porque se eu não tivesse vindo morar na ocupação, não sei nem o que seria de mim.”

A vida pós-MSTC

A maranhense identifica sua mudança para a ocupação como o ponto de virada de sua vida, dizendo que, a partir de 2017, “tudo fluiu”.

Logo após a ida para a Nove de Julho, Wanderson conseguiu um emprego de carteira assinada. Sheila, aproveitando o conhecimento que tinha adquirido ajudando a prima, começou a trabalhar vendendo seus próprios bolos. 

No início, ela participou da Cozinha Ocupação Nove de Julho (leia mais) e começou a vender bolos aos domingos, quando a ocupação abre ao público para almoços.

Depois, quando conquistou sua clientela, passou a trabalhar somente com encomendas – que é uma das fontes de renda da família até hoje.

Ainda em 2017, Sheila voltou ao Maranhão com a intenção de trazer sua primogênita para o novo lar da família, mas o impacto do distanciamento era maior do que o esperado.

A menina, com cinco anos naquela época, estava há mais de três anos morando com a avó, sem ver a mãe, e não quis vir para São Paulo. “Ela não fazia muita questão de mim, ela preferia mais a minha mãe”. 

Ryellen passou mais três anos afastada de sua mãe. O reencontro da família veio em 2020, quando a irmã caçula de Sheila foi ao Maranhão e a sobrinha decidiu acompanhar a tia na viagem de volta.

Atualmente, a filha mais velha tem 9 anos, seguida por Carlos Eduardo, com 7, e Isabelle Cristina, com 5. Segundo a mãe, ambos possuem acesso aos direitos básicos garantidos às crianças, como educação, saúde, segurança e acesso à cultura. 

Os dois mais velhos estudam pela manhã; à tarde, a mãe os leva para um projeto social próximo à Nove de Julho para que consiga trabalhar. Também nesse período é a vez da pequena Isabelle ir à escola.

Entre as idas e vindas diárias, Sheila explica que garantir que as crianças estejam na escola é sempre sua prioridade. O compromisso se explica pelo desejo da mãe de dar condições para que o curso da vida dos filhos seja diferente do seu.

“Eu parei a minha vida, deixei de fazer muita coisa por conta deles. Eu não quero que eles passem por tudo que eu passei e que eu vivo ainda passando, porque eles ainda estão pequenos, ainda tem muito chão pela frente.”

Com a atuação do MSTC, Sheila também sente que os filhos têm amparo em relação à saúde. Recentemente, a mãe começou a desconfiar da possibilidade de Carlos Eduardo se enquadrar no Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Ainda sem diagnóstico, Sheila observa que o menino tem apresentado dificuldade na fala, extrema agitação e falta de concentração.

Foi a assistente social do movimento, em diálogo com a agente de saúde que acompanha os moradores da ocupação, quem conseguiu encaminhar o processo para marcar a consulta com uma fonoaudióloga e dar início ao tratamento em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) no final de setembro deste ano. “Eu passei o problema para elas e elas me ajudaram a resolver”, conta.

Para Sheila, além de promover o acesso à moradia, educação e saúde, o MSTC também possibilita que sua família tenha contato próximo com diferentes manifestações culturais.

Vez ou outra, o movimento realiza exibições de filmes; exposições de arte e shows na própria ocupação. Outras vezes, os moradores ganham ingressos de instituições parceiras. “Eu não vou muito, porque sou muito preguiçosa”, explica ela, dando risada sobre a última opção.

Morar em uma ocupação também deu a Sheila uma rede grande de conhecidos. De migrante quase solitária em terras paulistas, hoje em dia a maranhense tem que se esforçar para passar despercebida. Ela atribui a popularidade a sua ocupação como boleira.

“Todo mundo conhece a Sheila no prédio, até os que estão chegando”, diz ela. Com um perfil reservado, porém, explica que tem mais amizade com os moradores antigos e, mesmo assim, não costuma estar sempre na casa deles. “A gente se respeita muito.”

Hoje, Sheila mora no Residencial Cambridge, uma antiga ocupação do MSTC que se tornou prédio de moradia popular. A família se mudou em 28 de setembro de 2022, quatro anos após ter sido indicada pelo movimento como suplente a uma vaga no residencial.

Para a maranhense, seu exemplo reflete qual deve ser o papel dos movimentos em busca de moradia na vida de uma pessoa.

Segundo ela e outros moradores ouvidos neste projeto, o período morando em ocupação, pagando uma taxa de contribuição menor do que seria o valor de um aluguel em São Paulo (R$ 220 reais, no caso das ocupações do MSTC), deve ser utilizado para “correr atrás de outras coisas”. 

“Agora eu posso dizer assim: ‘eu tenho um lar, agora eu não sou mais uma sem-teto’”, comemora.

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“Enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito” https://morardireito.com.br/por-que-se-ocupa/ Wed, 19 Oct 2022 13:41:23 +0000 https://morardireito.com.br/?p=320 Cerca de 322,7 mil pessoas viviam em déficit restrito no município de São Paulo em 2019, segundo um estudo coordenado pelo economista e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Robson Gonçalves para a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).

O número engloba domicílios considerados como “habitação precária” (improvisados e rústicos); “coabitação familiar” (cômodos e famílias conviventes) e “adensamento excessivo”.

Além das pessoas vivendo em moradias precárias, no final de 2021, a capital paulista possuía, ao menos, 31.884 pessoas em situação de rua, segundo censo realizado pela prefeitura.

O número, que já considera o impacto da pandemia, representa um crescimento de 31% em relação a 2019 – quando a população de rua no município era de 24.344.

Por outro lado, de acordo com o último censo divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), realizado em 2010, 293.621 domicílios estavam vagos na cidade de São Paulo. Os dados estão para ser atualizados com base no levantamento realizado pelo IBGE neste ano.

Diante da discrepância entre casas vazias e pessoas sem casas, surgem na cidade diversos movimentos sociais ocupando para morar prédios ociosos, ou seja, que não estão sendo utilizados por seus proprietários.

“Enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito” é a premissa norteadora.

As entidades se apoiam em alguns trechos constitucionais que, segundo elas, justificam suas ações. Vale destacar dois dos argumentos: os direitos sociais e a função social da propriedade.

A Constituição Federal de 1988 – legislação máxima do país até hoje – estabelece a moradia como um direito social.

“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”, prevê a emenda mais recente do Artigo 6º, Capítulo II, da Carta Magna brasileira.

Já a função social da propriedade é descrita no Inciso XXIII do Artigo 5º da lei suprema, logo após a garantia ao direito da propriedade.

“A propriedade precisa cumprir uma função social, desde a Constituição de 1988. E, lamentavelmente, a atuação de sucessivas gestões públicas municipais pende muito mais para o mercado imobiliário e para os proprietários de terra e não cumpre [a legislação]”, afirma o deputado federal mais votado em São Paulo nas eleições de 2022, Guilherme Boulos (PSOL).

Segundo Boulos, que lidera o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), os movimentos sociais existem para pressionar as autoridades a cumprirem a lei. O parlamentar defende que imóveis vazios há décadas, ou com dívidas superiores aos seus próprios valores de mercado, sejam desapropriados e requalificados para moradia popular.

Além do MTST, outras centenas de movimentos atuam em defesa do direito à habitação na capital paulista. Na região central, uma das lideranças é Carmen Silva, que coordena o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC).

“Endereço é tudo na sua vida. Não deveria ser, né? Porque um país que não dá oportunidade não devia cobrar. Se você não tem moradia, como é que quer que as pessoas tenham um endereço bom? Mas é muito importante, porque com o endereço é que você tira seus documentos, trabalha, estuda. A sua vida é um endereço”, resume Carmen.

De 49 ocupações contabilizadas pela prefeitura no centro expandido de São Paulo (que inclui os bairros da Liberdade, Consolação, Bom Retiro, Brás, Mooca, Lapa, Vila Leopoldina, Barra Funda, Pinheiros, Vila Mariana, Saúde, Moema e Ipiranga), 37 se localizam no centro histórico, distribuídas pelos distritos do Bom Retiro, Santa Cecília, Consolação, Bela Vista, República, Liberdade, Cambuci e Sé.

A deterioração do centro histórico de São Paulo

Até metade do século passado, o centro histórico de São Paulo era lar de grandes avenidas, comércios e projetos arquitetônicos. 

Enquanto a região central concentrava riquezas, a população de menor renda se adensava nas periferias.

A partir dos anos 80, porém, o movimento começa a se alterar substancialmente. Segundo o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Paulo Cesar Xavier, a palavra que resume o que ocorreu naquela década é “reestruturação”.

“A reestruturação foi utilizada para quase tudo, teve a reestruturação produtiva, metropolitana e urbana. Há referência também à reestruturação imobiliária”, explica.

Se até aquele momento o centro figurava como polo comercial, financeiro, cultural e outros, os anos 80 marcam o início da descentralização da cidade. 

Os escritórios das empresas começaram a migrar para outros locais, como as avenidas Paulista e Faria Lima, por exemplo, que, diferente do centro, estavam investindo na modernização dos edifícios, afirma Xavier. 

Ao mesmo tempo, a cidade de São Paulo crescia em ritmo acelerado. De 1970 para 1980, a população da capital aumentou em mais de 2,5 milhões de habitantes, chegando a quase 8,5 milhões de residentes, segundo dados do IBGE. 

Comparando com a última década completa cujo ritmo de crescimento foi divulgado pelo censo, a cidade foi de 10,4 milhões no ano 2000 para 11,2 milhões de habitantes em 2010.

O professor da FAU explica que tais movimentos levaram à expansão da Região Metropolitana, possibilitando que muitas empresas transferissem suas fábricas para lugares mais distantes, como Sorocaba e Campinas.

“Como já havia tecnologia que permitia que o controle fosse a distância, os escritórios ficavam nesses edifícios inteligentes e o trabalho ficava em uma área mais distante, então isso reestruturou todo o espaço”, esclarece Xavier.

O avanço da tecnologia também altera a lógica de funcionamento dos comércios que antes se concentravam na região central. O professor explica que muitas lojas passam a comercializar seus produtos pela internet e reformulam seus estoques, que não precisam mais ficar no centro.

Enquanto se desenvolviam na cidade centros especializados (financeiro, turístico, comercial, entre outros), o centro histórico, cada vez mais desatualizado, perdia  atratividade e ganhava imóveis desocupados.

Mais ou menos na mesma época, em outros cantos da cidade, grupos se organizavam para reivindicar o direito à moradia e questionar a exclusão da população de baixa renda do centro.

Carmen Silva, que deixou a Bahia para escapar da violência doméstica, chegou a São Paulo em 1993. Em 1995, começou a “participar do movimento moradia, mas ainda eram os mutirões remanescentes da [Luiza] Erundina. Então, comecei a falar: ‘por que a gente tem que morar tão longe, quando se tem uma cidade abandonada?’ E, participando de várias reuniões, seminários, decidimos ocupar aqui a região central”.

Os movimentos de moradia no centro da capital paulista

Embora durante boa parte do século passado o centro histórico tenha concentrado equipamentos sociais e públicos, atendendo às demandas das elites, a região também era ocupada por cortiços – cujos baixos custos e proximidade das fábricas tornavam ideais aos trabalhadores.

É justamente ligada à proliferação dos cortiços que surgem os primeiros movimentos sociais em defesa da moradia no centro de São Paulo.

Ainda que existam registros de moradores de cortiços se mobilizando em busca de melhores condições habitacionais nos anos 70, as movimentações eram, até então, os primeiros passos de uma longa caminhada.

O início da década de 90, por outro lado, consolida a presença de movimentos de moradia no centro paulista. 

Em 15 de junho de 1991 é criada a Unificação das Lutas de Cortiços (ULC), durante a realização de um ato na região da Sé. Esse processo de formação dos movimentos é narrado pela pesquisadora Roberta dos Reis Neuhould em sua tese de mestrado na USP.

Segundo Neuhould, em trecho do trabalho, “a ULC é reconhecida pelos integrantes dos movimentos de moradia como a origem das lutas sistemáticas por habitação digna na área central”.

A organização, que juntava alguns movimentos, foi precursora da prática de ocupar imóveis vazios na região, a partir de 1997.

Carmen Silva, que hoje lidera o MSTC, naquela época, estava em seus primeiros anos de envolvimento na causa. Ela lembra que participou, em maio de 97, da ocupação do “Casarão Santos Dumont, na Alameda Cleveland, que hoje é o Museu da Energia”. 

Nesta primeira ocupação, dona Carmen – como é conhecida pelos moradores – não pôde ficar morando no local, “porque o movimento era muito rígido quanto à participação”.

Ainda em 1997, a militante participou da ocupação do edifício 427 da rua Álvaro de Carvalho, na Bela Vista. Trata-se da Ocupação 9 de Julho que, anos depois, seria um dos principais símbolos do MSTC.

Ocupação 9 de Julho [Foto: Reprodução/Facebook]
Alguns anos mais tarde, dois coordenadores deixam a ULC e fundam seus próprios movimentos: primeiro, Verônica Kroll cria o Fórum de Cortiços; depois, Luiz Gonzaga da Silva inaugura o MMC (Movimento de Moradia do Centro). 

Posteriormente, do Fórum de Cortiços, um grupo constituiu o MSTC; e do MMC, surgiu o MMRC (Movimento de Moradia da Região Central), segundo relata o pesquisador Carlos Roberto de Aquino.

O Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC)

No dia 21 de março de 2000 nasce, em um hospital na Vila Formosa, zona Leste de São Paulo, o Movimento Sem-Teto do Centro, como uma dissidência do Fórum dos Cortiços. As parturientes eram um grupo de mulheres – em sua maioria, mães – que integravam movimentos de moradia no final dos anos 90.

“O MSTC nasce com o propósito de ter articulações, de fazer o advocacy, o lobby, ou seja, articulações com vários outros setores. Articulação com o Poder Público, com o bloco privado. Você tem que ter esse feeling de saber articular, de trazer para você outros elementos e outros setores, porque o movimento sozinho é sectário, ele morre”, relata Carmen Silva.

Naquela época, dona Carmen não era líder do coletivo. Ainda que tenha participado da fundação do MSTC e atuado junto do “bando de mulher” que tomou a frente, como ela define, o papel de coordenadora-geral foi assumido a partir de 2007.

O movimento resume seus objetivos em “melhorar a qualidade de vida, habitação, saúde, lazer e cultura para todos os associados e aqueles que querem fazer parte do MSTC, defendendo, organizando e desenvolvendo trabalhos sociais gratuitamente”.

A relação estabelecida pelo MSTC entre acesso à moradia e garantia dos direitos sociais também é defendida por Guilherme Boulos.

“A luta por moradia digna, como prevê a Constituição, tem que estar articulada à redução de distâncias, à aproximação entre o local de trabalho e local de moradia, a levar equipamentos públicos, não só os básicos de educação, saúde, que em uma cidade como São Paulo já são bem espraiados, mas de lazer, de cultura, enfim, de oportunidades para as pessoas. Então, não é só teto, é uma disputa muito mais ampla por qualidade de vida e dignidade”, explica o deputado eleito.

Atualmente, o MSTC possui CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) como instituição sem fins lucrativos e coordena cinco ocupações na região central da cidade. As informações abaixo foram obtidas junto ao movimento:

  • Ocupação 9 de julho

Uso original do edifício: empresarial e residencial

Proprietário: INSS-IPREM

Período que permaneceu inutilizado: esvaziamento em 1970; paralisação de todas as atividades em 1980

Ano da ocupação mais recente: 2016 

Número de famílias que moram no local: 129

  • Ocupação José Bonifácio

Uso original do edifício: comercial

Proprietário: pessoa física

Período que permaneceu inutilizado: mais de 30 anos

Ano da ocupação mais recente: 2012

Número de famílias que moram no local: 100

  • Ocupação Rio Branco

Uso original do edifício: cinema e hotel

Proprietário: município de São Paulo

Período que permaneceu inutilizado: mais de dez anos

Ano da ocupação mais recente: 2011

Número de famílias que moram no local: 63

  • Ocupação São Francisco

Uso original do edifício: comercial

Proprietário: Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo

Período que permaneceu inutilizado: mais de 20 anos

Ano da ocupação mais recente: 2014

Número de famílias que moram no local: 30

  • Ocupação Casarão

Uso original do edifício: loja

Proprietário: pessoa física

Período que permaneceu inutilizado: desconhecido

Ano da ocupação mais recente: 2013

Número de famílias que moram no local: 24

No caso da 9 de Julho, além de abrigar as famílias, o local é símbolo do movimento, contando com loja, horta urbana e cozinha coletiva.

Desde sua ocupação mais recente, em 2016, a estrutura se tornou uma espécie de ponto cultural, aberto a pessoas de fora do movimento. Por lá ocorrem exposições, shows, festas, palestras, oficinas, dentre outras atividades (leia mais sobre a ocupação 9 de Julho).

Além das cinco ocupações, o MSTC possui um empreendimento. Caso prático de requalificação de imóvel ocioso, o Residencial Cambridge é, atualmente, um prédio de moradia popular.

Localizado na avenida Nove de Julho, os 15 andares do edifício foram construídos na década de 50 para funcionarem como hotel. 

Naquela época, o prédio foi um marco arquitetônico da cidade, planejado para receber membros da elite.

Quando nasceu, foi batizado como “Claridge” pelo grupo hoteleiro responsável. Depois, tornou-se Hotel Cambridge.

Em 2002, o hotel fechou suas portas e o local passou a funcionar somente como casa de eventos.

Nove anos depois, em 2011, a prefeitura de São Paulo adquiriu a posse do imóvel, com o objetivo de torná-lo um “prédio de locação social, de uso misto, com famílias de renda mensal de até seis salários mínimos”.

Em 2012, sem a prefeitura ter avançado com o programa de reforma, um grupo de sem-tetos que integrava a Frente de Luta por Moradia (FLM) ocupou o edifício.

A FLM é uma entidade criada em 2004 para reunir movimentos sociais por moradia. O MSTC, que integra a organização desde sua fundação, participou diretamente da ocupação do antigo hotel.

O Cambridge permaneceu ocupado entre os anos de 2012 e 2016, quando a titularidade do imóvel foi transferida para o MSTC. Na época, 174 famílias viviam no local.

Os anos de ocupação, em uma junção de ficção e realidade, foram retratados no filme Era o Hotel Cambridge, dirigido por Eliane Caffé. Tendo Carmen Silva como protagonista, o longa participou de diversas premiações, como o Periférica Cine e CineMigrante/OIM, e festivais.

Desde o início da ocupação, os movimentos travaram uma batalha com a Prefeitura para impedir que o imóvel fosse entregue a uma Parceria Público-Privada (PPP).

O MSTC venceu a disputa e conseguiu um edital do extinto programa Minha Casa, Minha Vida – Entidades para custear a reforma do prédio e criação de unidades habitacionais de interesse social.

O movimento ficou responsável por gerir a obra, iniciando o processo de reforma em 2019. No período de desocupação, algumas famílias que residiam no Cambridge foram morar na ocupação 9 de Julho, e outras passaram a viver de aluguel.

Residencial Cambridge após reforma [Foto: Renata Souza]
Em 2022, com a reinauguração do prédio, 121 famílias que conseguiram financiar uma unidade habitacional no Residencial Cambridge puderam retomar ao imóvel – incluindo a líder do movimento, Carmen Silva, que conquistou, após mais de 20 anos de militância, sua casa própria.

A política habitacional de São Paulo

Com o fim do programa de habitação federal Minha Casa, Minha Vida, na gestão de Jair Bolsonaro (PL), a cidade de São Paulo lançou seu próprio projeto de combate ao déficit habitacional. O “Pode Entrar” foi sancionado pelo prefeito Ricardo Nunes em 2021

“É a primeira vez que a cidade de São Paulo tem um programa habitacional que foi transformado em lei, ou seja, deixa de ser uma política de governo e se torna uma política de Estado”, afirma o secretário de habitação da capital paulista, João Farias.

De acordo com o secretário, o projeto traz algumas novidades em relação ao Minha Casa, Minha Vida, como a possibilidade de se comprar unidades habitacionais diretamente da iniciativa privada.

“Ao comprar direto da iniciativa privada, a gente pula uma série de etapas que o Poder Público deveria ter, como por exemplo, fazer licitação de projeto executivo, depois fazer licitação para contratação da construtora, até a obra ficar pronta”, apontou.

Os editais do programa chegaram a ser suspensos pelo Tribunal de Contas do Município (TCM) de São Paulo no meio deste ano, após serem apontadas irregularidades no processo.

No final de novembro, o TCM “autorizou a retomada condicionada e parcial do Chamamento Público“.

Segundo informações da secretaria, o Pode Entrar atenderá dois grupos principais:

  • Grupo 1: famílias com renda bruta de até 3 salários mínimos, sendo o comprometimento da renda de até 15% para o valor da prestação;
  • Grupo 2: famílias com renda bruta de até 6 (seis) salários mínimos, para subsídio por meio de Carta de Crédito.

Além disso, o programa também retomará obras do Minha Casa, Minha Vida – Entidades, destravando, a princípio, dez mil unidades da modalidade.

Farias afirma que o foco da atual gestão é atender as famílias mais vulneráveis, “que não têm acesso ao crédito, que não têm emprego formal e que não conseguem financiamento”.

Até o final do mandato de Ricardo Nunes, em 2024, o objetivo é entregar 49 mil unidades habitacionais de interesse social, com investimento superior a 8 bilhões de reais. 

As unidades a serem construídas se direcionam a atender o cadastro da Cohab (Companhia de Habitação Popular), do Auxílio Aluguel da Prefeitura e famílias que vivem em áreas de risco.

Segundo Farias, a meta supera o número de moradias entregues em toda a série histórica. No período de 2017 a 2022, que reúne as gestões de João Doria, Bruno Covas e início do mandato de Ricardo Nunes, foram 19,5 mil unidades.

Ainda que o município cumpra o objetivo estipulado para os próximos anos, o ritmo de produção está longe de ser o suficiente para sanar o déficit.

Segundo um estudo da Abrainc, São Paulo teria de construir em média 73 mil moradias por ano até 2030 para suprir a demanda atual e futura.

Sobre a estimativa, o secretário de habitação afirmou que “não temos sequer capacidade de produção de matéria-prima, de mão de obra, para entregar 73 mil unidades por ano”.

Outro obstáculo que a capital enfrenta, na avaliação do arquiteto, urbanista e professor da USP, Nabil Bonduki, é a inexistência de um Plano Municipal de Habitação.

Segundo Bonduki, o Projeto de Lei seria “uma estratégia para você enfrentar esse déficit habitacional que nós temos. O plano, feito lá na gestão [Fernando] Haddad, foi enviado para a Câmara e está lá desde 2016. Não foi foi aprovado, rejeitado e nem foi feito um substitutivo”.

O deputado Guilherme Boulos concorda com a crítica. “Não se combate a falta de habitação apenas com medidas mitigadoras, pontuais. É preciso ter um plano de médio e longo prazo que estruture o combate ao déficit habitacional e a falta de infraestrutura urbana em São Paulo”, defende.

Sem um plano específico, as políticas habitacionais da cidade são definidas a partir de uma série de decretos, elaborados, essencialmente, com base no Plano Diretor Estratégico (PDE).

O PDE mais recente de São Paulo foi aprovado em 2014, na gestão de Fernando Haddad (PT). A lei apresenta bases para o desenvolvimento e crescimento da capital até 2029.

Segundo Bonduki, o Plano Diretor Estratégico é reflexo de um processo que se iniciou no país ainda durante a redemocratização, após o período da Ditadura Militar.

“A partir da Constituição de 1988, o contexto nacional é muito favorável à questão de garantir direitos. Há uma luta que vai existir no Brasil a partir da redemocratização para que se garantam direitos básicos. E uma dessas importantes lutas que nós vamos ter no Brasil é a luta pela reforma urbana.”

Treze anos depois da redemocratização, em 2001, o Estatuto da Cidade é aprovado, estabelecendo as “diretrizes gerais da política urbana” do país, segundo consta no texto assinado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Bonduki explica que o Estatuto da Cidade cria as bases para, no ano seguinte, ser aprovado o primeiro Plano Diretor Estratégico de São Paulo como estado democrático de direitos.

“O Plano Diretor de 2014 é um desdobramento do Plano Diretor de 2002. Na verdade, o Plano Diretor, a partir do Estatuto da Cidade, de 2001, transforma-se no principal instrumento de política urbana dos municípios”, diz Bonduki, que foi relator do plano e, atualmente, integra o grupo técnico da equipe de transição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para assuntos relacionados às cidades.

Dentre as diretrizes essenciais do PDE criadas a partir do estatuto está o combate aos imóveis ociosos.

“Terrenos vazios no centro podem ser notificados e, se não forem apresentados projetos, eles podem ter cobrados impostos progressivos no tempo”, explica.

Além disso, a revisão do plano em 2014 determina a duplicação das áreas de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) destinadas à produção de Habitação de Interesse Social, incluindo regiões bem localizadas quanto ao atendimento de transporte público e no centro da cidade.

Outra mudança proposta pelo PDE mais recente é a obrigatoriedade de destinação de 30% dos recursos do Fundo Municipal de Urbanização (Fundurb) para a construção de habitações de interesse social.

O Fundurb, que existe desde 2002, é abastecido a partir da arrecadação da chamada Outorga Onerosa – valor que deve ser pago à prefeitura quando uma construção supera o limite determinado de cada região.

“A lógica era usar o recurso do Fundurb para que a prefeitura passasse a ter terras bem localizadas, em áreas mais centrais, em áreas mais valorizadas, áreas que têm equipamentos sociais, que têm emprego, para a produção de habitação”, explica Bonduki.

O especialista afirma, no entanto, que a partir de 2019 a aquisição de terras bem localizadas deixa de ser o foco do fundo, embora a aplicação de recursos para a construção de moradias populares se mantenha.

A alteração foi oficializada na lei nº 17.217, de 23 de outubro de 2019.

Poder Público e movimentos sociais

A líder do MSTC, Carmen Silva, e o secretário de habitação João Farias concordam que o diálogo deve ser o protagonista na relação entre os movimentos sociais e o Poder Público.

É uma “relação de respeito, é uma relação harmoniosa, mas é uma relação clara e sincera de que nenhum governo produziu tanto na área habitacional como o nosso”, afirma Farias. 

O secretário, porém, critica a estratégia de ocupar imóveis ociosos. “Tem que ter respeito na relação e entender que o caminho para conseguir uma unidade habitacional hoje, em São Paulo, não é através da invasão, é através de diálogo com o Poder Público.”

Já os movimentos sociais criticam o uso do termo “invasão”. Segundo o MSTC, invadir, diferentemente do que fazem, equivale a entrar em imóveis que cumprem suas funções sociais.

Em relação às ocupações já existentes na cidade, João Farias afirmou que “está em estudo aqui [na secretaria] a requalificação de mais dez prédios que são de propriedade do município, que são da Cohab, e que estão ocupados por movimentos moradia, para que a gente possa atender as pessoas que lá estão ou que participaram da ocupação”.

Sem entrar em detalhes, porém, o secretário ressalta que há um levantamento sobre os prédios ocupados na capital e que “carecem, uma parte deles, para desapropriação”.

Em entrevista, João Farias falou ainda sobre o Projeto de Intervenção Urbana (PIU) central, que tem como principal objetivo atrair novos moradores à região, e outros projetos da prefeitura. Assista aos principais momentos:

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Dos direitos sociais: Moradia https://morardireito.com.br/carmen-silva/ Wed, 19 Oct 2022 01:39:08 +0000 https://morardireito.com.br/?p=245 Carmen Silva, 62, carrega o tom de liderança em muitas das suas múltiplas facetas. A mais conhecida, como fundadora e coordenadora do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC).

No Insper, também assume a frente, como professora do Núcleo Mulheres e Territórios do Laboratório Arq.Futuro de Cidades. Até mesmo fora das salas de aula, a baiana está acostumada a ser didática em suas explicações: por vezes em palestras, por vezes em entrevistas.

Para os moradores do MSTC ouvidos para este projeto, a coordenadora comanda o movimento como uma matriarca.

“Dona Carmen é aquela mãe brava, que quer que os filhos sejam meninos melhores. O que ela busca para as famílias do movimento é que nós sejamos pessoas organizadas”, conta Sheila Santos, que vive há 6 anos em ocupações coordenadas pelo MSTC.

“Mainha de milhões”, resume Felipe Figueiredo, morador da ocupação Nove de Julho, no centro da capital paulista.

A maternidade, de fato, compõe uma parte central da vida de Carmen Silva. Biologicamente, é mãe de oito: Jadson, Janice (conhecida como Preta), Sidney, Liliane, Nadson, Tiago, Lorena – que faleceu há pouco mais de um ano – e Kellen. 

Quando deixou a Bahia, seu estado natal, com destino a São Paulo, dona Carmen tinha sete filhos. A mais nova nasceria alguns anos mais tarde, no Sudeste.

Hoje em dia, os filhos já saíram de casa e a baiana mora sozinha. Vítima de violência doméstica, deixou o ex-marido há quase trinta anos e nunca mais confiou em se juntar com um parceiro.

“A gente fica ressabiada. Você toma a primeira paulada e não confia mais na pessoa. Você prefere ficar independente”, conta. 

Fora de casa, por outro lado, a vida é sempre cheia de gente. Na ocupação Nove de Julho, Carmen Silva vive cercada de moradores e visitantes. Quando não está trabalhando, está rodeada nos sambas de rua do centro de São Paulo.


Na Bahia, escola como privilégio

A líder do MSTC nasceu em maio de 1960, no Recôncavo Baiano. Nos primeiros anos da infância, mudou-se para Salvador, onde viveu quase metade da vida.

Filha de um militar com uma empregada doméstica, Carmen diz que teve “um pouco de privilégio” por ter tido um pai que se preocupou em colocá-la na escola.

Reconhecendo-se como uma criança “arteira”, que gostava de ler e estudar, concluiu o Ensino Médio e um curso técnico em contabilidade ainda na Bahia.

“Mas era para ser educada para casar, né? Não para militar, não para ser ativista, não para exercer profissão”, explica.

Carmen cumpriu os requisitos do pai e se casou em 1979, aos 19 anos. Mais de duas décadas depois do matrimônio, o então marido seria o motivo de a baiana se ver obrigada a migrar para São Paulo, em 1993. “Para não morrer nas mãos do feminicida”, diz ela, sem rodeios e com olhar distante.

Uma refugiada em terra natal

“Eu vim com amigos, mas, chegando aqui, eu vi que o dinheiro acaba e já fica estranho, né? E aí eu fui para nas ruas e, das ruas, eu fui para o albergue. Daí eu conheci o movimento de moradia. 

Eu vim como todo mundo vem, com o êxodo urbano, achando que São Paulo, por ser uma grande metrópole, é acolhedora e não é nada acolhedora. 

Primeiro, porque eu não tinha pertencimento algum e, independente do lugar onde eu estivesse aqui, a falta da política pública afeta demais a vida de qualquer cidadão brasileiro.

Não tinha trabalho, eu vim para ir para casa de amigos, mas aí quando passou um tempo já começou a ficar estranho. Primeiro que tem a individualidade de cada um. E também era mais um corpo, né? As pessoas prezam muito essa questão dos gastos. 

E, sobre emprego, eu achava que, porque eu tinha estudo, eu iria conseguir emprego fácil e nada disso. Isso é tudo história.

E isso é recorrente até hoje. Eu, como brasileira, eu me senti uma estranha, uma refugiada no meu próprio país. Você imagina quem vem de outro país, que não fala a mesma língua e tem os mesmos problemas.”

Para escapar da violência doméstica, Carmen teve que deixar os filhos na Bahia. Em seu estado natal, a fundadora do MSTC estagiou no setor administrativo e chegou a trabalhar com transportes urbanos e Recursos Humanos.

Quando chegou em São Paulo, porém, a baiana percebeu que seu currículo no Sudeste era composto por outros fatores: raça, naturalidade e endereço. “Nós temos a ditadura do CEP. Se o seu CEP é central, você terá oportunidades, se o seu CEP não é…” diz ela, sem completar a frase, enquanto acena a cabeça fazendo sinal de confirmação.

Sendo alguém que se define como “contestadora e mobilizadora”, não demorou muito para dona Carmen cruzar com o que mudaria o rumo de sua vida.

Em 1995, ela começa a participar de movimentos em defesa do direito à moradia. 

Também é nesse ano que nasce sua filha caçula, Kellen. 

Naquela época, os grupos reunidos pela pauta da habitação eram formados por pessoas remanescentes dos mutirões de autogestão para construção de moradias populares implementados na gestão da ex-prefeita de São Paulo, Luiza Erundina (1988-1992).

As reuniões despertaram em dona Carmen a inquietude com o distanciamento entre onde morava a população de baixa renda e o centro da cidade. É a partir deste incômodo que o grupo decide ocupar a região central de São Paulo.

As ocupações

Em maio de 1997, Carmen Silva participou de sua primeira ocupação. O grupo se instalou no Casarão Santos Dumont, nos Campos Elíseos, que hoje abriga o Museu de Energia. “Ainda não tinha possibilidade de morar [na ocupação], porque o movimento era muito rígido quanto à participação”, explica.

Naquele mesmo ano, a atual coordenadora do MSTC liderou, com um grupo de mulheres, a ocupação do prédio 427 na rua Álvaro de Carvalho, bairro da Bela Vista. A ocupação Nove de Julho foi a primeira que dona Carmen pôde morar e, anos mais tarde, seria um símbolo do movimento.

O que hoje é ocupação, antigamente era um prédio não utilizado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Logo que ocuparam, o Movimento Sem-Teto do Centro ainda nem existia oficialmente. O MSTC só seria criado quase três anos mais tarde, em 21 de março de 2000.

“Por que que a gente tem que morar tão longe quando se tem uma cidade abandonada? E então, participando de várias reuniões, seminários, decidimos ocupar aqui a região central e, em 2 de novembro de 97, ocupamos aqui a Nove de Julho. Aí foi totalmente diferente, a minha vida deu uma guinada, porque eu passei a ter um CEP. Eu pude trazer os meus filhos. 

A gente que é mulher, a gente está sempre no front de luta, né? Sempre forjada em luta. Por exemplo, luta para comer, luta para morar, luta para a creche, para a escola. 

E, obviamente, todo cidadão que é um pouco politizado começa a entender a falta de políticas públicas e que não dá para ficar parado, aguardando que os outros tomem ações por você. Então, ou a gente se une, se integra, e têm uma atuação intersecretarial ou a gente fica para trás. 

Havia alguns incômodos. A gente veio de um outro movimento [Fórum de Cortiços] e já tinha alguns incômodos com algumas atitudes das lideranças desse movimento, e aí a gente resolveu fundar um movimento que fosse mais do diálogo, um movimento que pudesse participar, efetivamente, das discussões políticas da cidade e que a gente não estivesse sendo representada somente para fazer linha de frente para burburinhos, para ocupações. Não, a gente também queria participar efetivamente das discussões políticas da cidade de São Paulo.”

Dona Carmen, seus filhos, e outras dezenas de pessoas moraram na Nove de Julho até 2003, quando o prédio foi desocupado com a promessa de o Poder Público reformá-lo e permitir o retorno dos sem-teto no ano seguinte. Nunca aconteceu.

Quando saiu da Nove de Julho, a líder do MSTC foi viver de aluguel. A decisão foi tomada porque, naquele momento, sua família tinha condições de arcar com os custos e a matriarca não achava justo “tirar o lugar de quem não teria”. 

No aluguel, permaneceu até 2022, quando conseguiu financiar seu apartamento no Residencial Cambrigde – uma antiga ocupação do MSTC que se tornou prédio de moradia popular após vencer um edital do projeto Minha Casa Minha Vida – Entidades. “Há 30 anos Carmen Silva não tem casa [própria], porque eu priorizei outras pessoas terem”, afirma.

Já o prédio da Nove de Julho ficou em desuso por mais sete anos. Nesse meio tempo, em 2007, Carmen Silva se tornou liderança do MSTC. Em 2010, após uma reocupação simbólica no ano anterior, o edifício é ocupado novamente para moradia.

O grupo viveu no local por nove meses até ser reintegrado pela força policial. Depois, o local ficaria mais alguns anos vago novamente, até uma nova ocupação feita pelo MSTC, em 2016.

Desde então, a Nove de Julho continua ocupada. Dona Carmen explica que, naquele ano, a ocupação nasceu de maneira muito diferente das vezes anteriores. O movimento já contava com assistência técnica, além do propósito de estabelecer uma rede de saúde e cultura.

Hoje em dia, a ocupação Nove de Julho é tida por Carmen Silva como um “quilombo cultural”. 

“Quer dizer que aqui é um lugar que, de fato, acolhe as pessoas. Aqui é um lugar diverso, onde todos vendem suas ideias, onde todos são acolhidos. O aquilombar é acolher, é atravessar, é ter travessias: sair daqui, ir para o outro; do outro vir para cá. A gente tem residência artística, tem residência arquitetônica, a gente tem várias segmentações de visitas, de tudo, com o acolhimento”, explica.

Distribuídas pelos 14 andares do prédio 427 da rua Álvaro de Carvalho vivem mais de 120 famílias. Além das quase X pessoas, a ocupação Nove de Julho abriga loja, horta urbana, galeria de arte e cozinha coletiva.

Aos domingos, a ocupação recebe o público com almoço promovido pela Cozinha Ocupação 9 de Julho. 

A proposta nasceu em 2017 com o objetivo de “suprir as necessidades do MSTC em relação à alimentação durante suas atividades e promover, através de almoços abertos, uma maior visibilidade à luta por moradia”, segundo a descrição nas redes sociais.

A cozinha se propõe ainda a doar uma refeição à pessoa vulnerável a cada almoço vendido.


No cardápio dos domingos, há também palestras, shows, oficinas, festas e barracas de vendas com produções dos próprios moradores, como bolos e doces variados.

O preparo das refeições fica por conta dos moradores da ocupação que contam com a ajuda de chefs de cozinha, como Neka Menna Barreto, Talitha Barros, Helena Rizzo e outros. A participação dos profissionais é colaborativa e alternada.

Dona Carmen lembra que a ideia de abrir a Nove de Julho ao público surgiu durante uma viagem à Espanha. A líder do MSTC havia ido à Europa após indicação do filme Era o Hotel Cambridge (Eliane Caffé, 2016) ao prêmio San Sebastian.

O longa, estrelado por Carmen Silva e outros membros do movimento junto de atores famosos, como Suely Franco e José Dumont, apresenta a história de um grupo de refugiados que divide com sem-tetos a ocupação de um prédio no centro de São Paulo.

Além da menção honrosa do Festival, a coordenadora do MSTC trouxe para o Brasil uma inquietude: tornar a ocupação transparente ao público externo, tal qual as vitrines que conheceu na Espanha. 

Assim, dona Carmen avaliou que as pessoas poderiam desmitificar as ideias que se têm dos movimentos.

Hoje, do pouco que sobrou do prédio que permaneceu décadas em desuso, está o fornecimento irregular de água e energia.


Os processos judiciais

Na linha de frente de um movimento cujas ações são amplamente criminalizadas, Carmen Silva enfrentou a Justiça mais de uma vez. Nos últimos anos, foi acusada de extorsão em dois processos judiciais.

A primeira ação penal foi aberta em 2017, após uma denúncia de que a coordenadora do MSTC teria constrangido a primeira denunciante, nomeada como “Alfa” no processo, “mediante grave ameaça com o intuito de obter indevida vantagem econômica pessoal, a efetuar pagamentos em importe superior a R$ 15.000,00 (quinze mil reais), sob pena de despejá-la por mal da ocupação coletiva”.

Além deste montante, a denúncia ainda faz menção aos valores mensais cobrados dos moradores “estipulados e instituídos sem qualquer ingerência da COHAB, proprietária do imóvel, eram impostos a todos, divididos em R$ 200,00 (mensalidade) + R$ 10,00 (manutenção de extintores de incêndio) + R$ 15,00 (de produtos de limpeza) + R$ 20,00 (de despesas de água)”, explicita o processo.

Uma outra pessoa, tratada na ação como “Beta”, também denunciou a líder do movimento por motivo semelhante. A alegação era de que Carmen a teria coagido a “efetuar pagamentos em importe aproximado de R$ 600,00 correspondente a três parcelas de R$ 200,00” sob pena de despejo.

Deste processo, Carmen Silva foi absolvida em 29 de janeiro de 2019 pelo juiz Marcos Vieira de Morais. 

O magistrado entendeu que “o quadro probatório é conflitante e inconcludente, sendo insuficiente para comprovar que a acusada realmente exigiu, mediante violência ou grave ameaça, das vítimas protegidas Alfa e Beta os valores mencionadas na denúncia e seu aditamento, muito menos que que obteve para si ou para outrem vantagens econômicas indevidas”.

O Ministério Público recorreu da decisão, pedindo pela condenação de Carmen Silva. O recurso foi negado pela 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo e o processo encerrado.

Sobre o caso, dona Carmen se limita em dizer que “pessoas má intencionadas tiveram a proporção de querer trazer o que é errado para dentro das ocupações do MSTC e eu não aceito”.

Apesar de ter sido absolvida nesta ação, a ativista é acusada de delitos semelhantes em outro processo que segue em aberto. O caso se iniciou com o incêndio e desmoronamento de uma ocupação no centro da capital paulista em 2018.

Os 24 andares do edifício Wilton Paes de Almeida ficavam na região do Largo do Paissandu, em São Paulo. Antes do acidente, 445 pessoas ocupavam o prédio, segundo reportagens da época. O desabamento deixou sete mortos, incluindo duas crianças, e dois desaparecidos.

A investigação dos fatos levou à descoberta de que as famílias que viviam no local pagavam uma taxa de R$ 150 a R$ 400 como uma espécie de aluguel. A conclusão da denúncia do Ministério Público do Estado de São Paulo era de que “isto ocorre em todos os prédios invadidos”.

Embora não tenha relação com o Movimento da Luta Social por Moradia (MLSM), que coordenava a ocupação do Wilton Paes de Almeida, Carmen Silva foi denunciada junto com lideranças de outros quatro movimentos sociais e do MLSM.

De acordo com a líder do MSTC, o grupo que comandava a ocupação do referido desabamento não era um movimento organizado. “Lá [no Wilton Paes de Almeida] era uma pessoa que vivia de fato extorquindo, mas por que que não pegou a pessoa? Porque não foi atrás, não investigou a pessoa? Teve que jogar todo mundo no mesmo saco?”, questiona.

Como desdobramento da denúncia, dois filhos de Carmen, que também eram acusados, foram presos em 24 de junho de 2019. Preta e Sidney Ferreira permaneceram mais de 100 dias encarcerados. Outras duas lideranças foram detidas.

Na ocasião, Carmen Silva e mais quatro pessoas denunciadas pelo Ministério Público tiveram suas prisões decretadas, mas não chegaram a ser localizadas.

Em 3 de outubro de 2019, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decidiu em favor da líder do MSTC, substituindo o mandado de prisão pela aplicação de uma série de medidas cautelares, incluindo o comparecimento mensal em juízo e a proibição de frequentar ocupações ou falar com testemunhas e vítimas.

Diante do caráter provisório das medidas cautelares, o juiz Thiago Baldani Gomes De Filippo, do TJ-SP, revogou, em 28 de outubro de 2020, as medidas cautelares impostas, mantendo apenas o comparecimento bimestral em juízo e cumprimento de eventuais intimações no curso do processo.

Carmen se mostra tranquila diante da ação. “Eu tenho [tranquilidade], sabe por quê? Eu não devo, eu tenho que ter a tranquilidade da minha consciência. Agora me dói ver que a Justiça é tão falha, tão injusta.”

Vida política

“A gente se acostuma a negarem nossos direitos, né?”, reflete dona Carmen ao falar sobre suas reivindicações. Segundo ela, para compreender as ações dos movimentos sociais é preciso quebrar paradigmas.

A militante parte do princípio de que, se um direito é constitucional, como a moradia, tomá-lo “a força” não é um problema.


Filiada ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), a líder do MSTC defende o protagonismo do Estado na garantia dos direitos. Em sua equação, os movimentos sociais entram como interlocutores entre a sociedade e o Poder Público.

Carmen defende a tese de que a participação popular é fundamental, porque os habitantes são quem conhecem os territórios e podem elaborar propor alternativas eficazes.

“O Estado deveria ser geral, o único que fizesse esse papel de construção de política pública. O papel do Estado é gerir e fazer com que os seus cidadãos tenham seus direitos garantidos, em todos os sentidos, não só na moradia, mas na segurança, na educação, em tudo, mas nós também, da sociedade civil, nós temos que ter essa participação junto ao Estado.

Como é que nós podemos participar? É participando de todos os conselhos, participando de conferência, de audiências públicas. O percentual de pessoas que participam de audiências públicas é muito pequeno. 

O cidadão paulistano, por exemplo, não sabe que ele pode votar para escolher um conselheiro tutelar, que ele pode escolher o seu conselheiro municipal de Habitação, que ele pode escolher um conselheiro de Juventude, que ele pode escolher uma conselheira de Políticas Públicas para Mulheres, um conselheiro do Fundo de Desenvolvimento Social.

Então são muitas coisas que a população ainda não sabe. E, também, a culpa disso é do próprio Estado que não informa. O estado vem sempre com as políticas macros para o micro e hoje não dá mais.”

Sobre o déficit habitacional, Carmen é imediata ao responder que há “falta de vontade política”. A coordenadora critica a descontinuidade das políticas públicas provocada pela renovação das autoridades no Executivo e Legislativo a cada quatro anos. “Ao invés de dar continuidade ao que está indo para frente, volta para criar algo novo”, explica.

Insatisfeita, dona Carmen diz que cansou de ser representada e que está pronta para ser representante. Nas eleições de 2022, pleiteou uma cadeira na Assembleia Legislativa de São Paulo pelo PSB. Os 24.829 votos que conseguiu, porém, não foram suficientes para elegê-la como titular, ficando com a quarta vaga de suplente do seu partido. 

Em 2020, a ativista já havia tentado se eleger como vereadora pelo Partido dos Trabalhadores (PT), mas também acabou como suplente.

Apesar das tentativas frustradas até então, ela diz que continuará tentando. A idade, ao menos, não é um problema. Ainda neste ano, concluiu sua pós-graduação em Urbanismo Social no Insper. 

“Não tem sensação melhor. Eu acho que ninguém deveria ser banido da sala de aula. Não se dedicar à educação é a maior injustiça que o Brasil comete”, reflete sobre a formatura.

Daqui para a frente, dona Carmen diz que não quer sonhar e, sim, realizar. “Sonho é ter um país justo, mas a gente tem que caminhar para realizar, porque não adianta só ficar sonhando.”

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